.gênios
#80. se tudo é genial, como vamos saber se algo incrível surgir? resenha do livro 'o que é meu'. três dicas de newsletters. tratado de tordesilhas no tiktok: tudo pra mim.
por mais de uma vez já defendi a mediocridade por aqui. acho honesto e disruptivo ser mediano e não ter ou dar o melhor. estar na média pode salvar vidas. exemplo: há 20 anos tive depressão e o psiquiatra me receitou um remédio chamado pondera. nome ótimo, né. ele me tirava do fundo e me colocava num patamar intermediário, não no lugar mais alto. passei meses habitando o meio, não sentia alegria nem tristeza. foi estranho, mas foi bom apesar de tudo. eu precisava me estabilizar no meio para me recuperar.
vivemos em uma cultura que venera a expectativa e a expectativa pelo melhor. mas muitas vezes na prática quem vence não é o melhor, mas o médio, que tá ali se preservando e fazendo o seu. esse chega longe, mas nunca vão nos contar essa verdade. um sintoma dessa ansiedade crônica é que aparecem gênios toda semana, ainda que haja uma paradoxal escassez de inteligência em geral. na literatura, por exemplo, gênios são banalizados. um texto que gerou polêmica na minha bolha foi o fabricação de supostos gênios desafia atuação dos críticos, de dirce waltrick.
Algo curioso parece estar acontecendo nestes últimos anos no Brasil: a proliferação de gênios na nossa cultura. Diria que nunca houve tantos autores extraordinários como agora na área da ficção, do ensaio e da tradução, por exemplo, e quase todos muito jovens!
o artigo tem essa boa provocação, ainda que faltem nuances como o papel do capitalismo e dos editores na produção de gênios literários em série, muitas vezes selecionados porque abordam temas que vendem ou já carregam alguma base de seguidores. possivelmente existem outras forças atuando além das resenhas entre amigos se autocongratulando, apontadas no texto. ainda que esses clubinhos façam parte e ajudem a elevar um escritor razoável ao patamar de novo dogma do centro de são paulo. qual seu signo? gênios.
indo além do artigo da folha, penso nessa síndrome de stendhal transportada para absolutamente tudo: filmes, alimentos, política etc. essa síndrome foi catalogada a partir de relatos de palpitações, vertigens, ataques e infartos diante da exuberância artística na cidade italiana de florença. galera tipo intensa. e a gente anda meio assim, tendo infartos por qualquer motivo (não que florença seja qualquer coisa, mas vocês entenderam). se não for gênio nem leio, se não for pra me acabar nem saio de casa, a série que estreou semana passada é a melhor da história e outras empolgações excessivas por tudo. mas sim, irei retwittar esta foto quantas vezes for preciso:
muitas pessoas me indicam algo dizendo que passaram mal de rir ou de chorar e eu geralmente me sinto apenas ok quando vejo. claro que provavelmente tenho minhas complexidades (chata) (mas por favor sigam me indicando coisas). mas será que desaprendemos a modular nossas opiniões e sentimentos, colocando tudo em um lugar de excesso? quem não sente ou compactua desse excesso fica meio deslocado junto com os demais aquarianos na sala. o extremismo, palavra tão gasta, virou o comum. e o que pode vir depois disso, para além disso? o campo do possível fica meio improvável.
daí a você chamar um escritor, que era pra ser só bom e promissor, de novo gênio visceral cerebral pungente dos últimos 20 anos. pode até ser que sim, certamente há ótimas estreias na literatura (e vou falar de uma delas adiante), mas se todas são absolutamente impecáveis, como lidar com tamanha comoção a cada lançamento? como seria o mundo habitado apenas por gênios? vamos perceber quando algo realmente incrível surgir?
talvez essa euforia toda derive de uma interferência do marketing em cada ponto de nossas vidas. eu me perguntava, quando trabalhava em empresas com super hierarquias, como seria se todo mundo quisesse ser líder. cada um se acha especial, mas não tem lugar no topo pra todos. desnecessária essa coisa de gênios. é bem legal estar tranquilo aqui embaixo, na terceira classe do titanic todo mundo se diverte.
tenho ainda a impressão de que existem sentimentos da moda, em cada temporada há grandes convergências e repetições. lembra do gratiluz? estava por toda parte. agora todo mundo se sente atravessado por algo. e a gente também vivencia uma ansiedade por cultos e gênios, possibilitando o surgimento de figuras como fãs de bilionários, fãs de bancos, linkedins repletos de disputas sobre quem captura o ângulo mais original de um acontecimento à luz do neoliberalismo e outros fenômenos curiosos, sempre intensos.
um certo vazio espiritual e conceitual pode causar essa loucura de tentar preencher tudo de forma urgente com grandes promessas, gênios e milagres.
mais do que em gênios, acho que somos viciados em grandes expectativas de futuro e na ansiedade incontrolável de descobertas que vem junto. detestamos ansiedade, mas será que conseguimos viver sem ela?
não por acaso, resolvi incluir hoje um ótimo livro de estreia na minha ♥️primeira resenha como parceira da editora fósforo♥️ - e vale comentar que escolho os livros que vou trazer por aqui =) depois da minha jornada exaustiva de trabalho e um tempo sem conseguir me concentrar nas leituras, li em apenas um dia o ótimo O que é meu, de José Henrique Bortoluci. o livro tem chamado atenção por ter tido os direitos vendidos para dez países antes mesmo de ser publicado no brasil. uau.
o enredo é daqueles dos quais costumo fugir, pois evito emoções e histórias familiares. mas fiquei curiosa com a comoção que provocou. quando vi, tinha terminado e senti muita admiração pela quantidade e profundidade de temas abordados em apenas 137 páginas. adorei.
o autor vai, volta, solta e pega de volta uma série de assuntos que se cruzam e fluem como estradas - e tudo faz sentido no percurso. o ponto de partida, para o qual ele sempre retorna, são as histórias do pai caminhoneiro que enfrenta uma doença grave, cujas conversas gravadas vão se transformando em uma espécie de herança.
meu patrimônio são as palavras do meu pai - as palavras daquelas histórias da minha infância e as ouvi nestes últimos anos, enquanto ajudava a cuidar de seu corpo frágil (p.132)
vai se formando o tecido do livro, o que é dele, quais as palavras que vão dando sentido. política, história, covid, a convivência angustiante com a doença do pai, o vocabulário que se amplia à força pra dar conta das tensões e intervenções naquele corpo. a coragem de reconhecer o mundo dos pais como muito diferente do dele, mas realizar o exercício de compreender e amar as coisas como são, se apropriando do que é dele enquanto aproxima vários tempos nesse livro.
há vários momentos interessantes, como comparar o pragmatismo do caminhoneiro e dos astrônomos soviéticos ou o cinismo do projeto de modernidade que só os caminhoneiros ou outras pessoas às margens vivenciam. tudo o que é dele vem dessas junções e rotas que definem a vida de cada um. é bonito pensar na vida não como pontos de chegada, mas como caminhos possíveis. o que é meu faz pensar nas nossas próprias histórias, nos nossos percursos e em tudo o que nos constitui. no que é meu de fato.
três newsletters com ideias que têm a ver com genialidade e que adorei:
ícone do nosso tempo, sem discussões. sextou =)
É aquilo que o Pessoa já vem nos dizendo, né?: "Arre, estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo?" Adorei esta edição!
Quando você comentou que a gente anda tendo síndrome de Standhal pra tudo, eu fiquei pensando o quanto essa linguagem de hipérbole é uma necessidade performática num mundo dominado por propaganda. E a frustração que vem disso tá embutida nessa sensação permanente de não se encaixar: se não senti nem percebi tudo isso, o que tem de errado comigo? As vezes a gente esquece que o estranho também tá lá fora. (Ps: agora não tô mais no tuiter e amei especialmente mais a sua curadoria. Fãs de marca, çocorro 🤭)