.não é pra ler agora
#91. vou mandar áudio pq é melhor. vou tirar selfie na frente do quadro que vc ia ver pq tb é melhor. não vou desviar na calçada porque é melhor. será que tudo precisa ser assim?
o mundo ultimamente se divide entre dois tipos de pessoas. as que são como eu, que odeiam tudo, estão tranquilas quanto a isso, mas não querem atrapalhar o rolê de ninguém; e aquelas que falam vou mandar audio que é melhor (pra quem?) e/ou não é pra ler agora, estou mandando pra eu não esquecer (23h47 de sexta-feira).
a onda de egoísmo que varre o mundo online é um fenômeno que poderia ser mais estudado. certamente todos aqui já leram/ouviram conversas tipo “ninguém mais se escuta, as pessoas só querem falar”, porque é isso mesmo e quase todo mundo sente na pele o egoísmo alheio. o excesso de protagonismo é um importante sintoma, uma vez que tudo aponta e retorna para si mesmo sempre - então faz super sentido o egoísmo. e tenho observado como isso transparece também em coisas pouco óbvias, como nos exemplos cotidianos acima e nas atitudes que exibem o individualismo reluzindo tal como os colares emirados da mijóias (alguém avisa que mijóias não soa bem? aliás, não avisem: deixem rolar).
com certeza, dos exemplos acima, o que mais me choca é o #2, o não é pra ler agora, estou mandando pra eu não esquecer (23h47 de sexta-feira). vamos analisar esse case em 7 pontos, saussure nos meus ouvidos:
primeiro o alecrim acha que tudo bem ativar uma notificação no celular de uma ou mais pessoas pra nada, só “pra não esquecer”
a desorganização de alecrim não ter um pedaço de papel, um alarme de celular, uma alexa, um post it, um email enviado para si, qualqueeeer coisa pra usar como lembrete em vez de jogar sua banalidade pra um grupo num horário apropriado
achar que é importante o suficiente nas nossas vidas pra enviar uma mensagem tarde
o alecrim não ter vergonha de expressar a falta de consideração com o tempo do próximo, escrevendo uma coisa dessas a uma hora dessas
inclusive alecrim acha que está dando um show de humanidade e respeito com as pessoas ao orientar para que não leiam o que estão lendo
a falta de traquejo em achar que mesmo sem ser urgente tem direito a invadir meu telefone e requisitar a atenção porque teve, sei lá, uma ideia
e o ápice pra mim é a mensagem conter uma ordem ou sugestão - de que não é pra ler agora. sendo que só vou saber depois de ler e passar raiva que não era pra ter lido agora
é um ultrage. quem não sente ódio e a pressão chegando a 32 por 22 com esse tipo de mensagem é porque já morreu por dentro. não tem como achar simplesmente normal e socialmente aceitável ser incomodado sem motivo.
posso parecer doida, mas isso é apenas o início de um grande ciclo de erros, de uma quebra sistemática de pactos e limites. tudo é muito precário, cada contenção que a gente tenta construir pra não perder a dignidade.
sei que muita coisa mudou com o advento da web, novos tempos e comportamentos, genZ, bermuda jeans em alta, tudo muito inesperado etc, mas bom senso must go on. alguns baluartes a gente poderia conservar, senão vai ser a barbárie. de certo modo já estamos navegando na barbárie, mas o que a gente puder fazer pra reduzir danos… melhor para todo mundo.
e aí vai rolar aquele momento: um dia a gente vai se encontrar, você pessoa que tinha medo de se esquecer e interrompeu minha vida as 23h47 pra nada. você vai me mandar uma mensagem tipo SOS ESTOU SEQUESTRADE ME AJUDE COM PIX e não vou visualizar ha ha ha, pois já terei aprendido a desprezar e silenciar você que foi tão incoveniente. como sabemos, a roda do karma tá frenética.
seguindo o embalo, tenho duas outras experiências de egoísmo alheio que vivi recentemente. uma é quase que diária: o fenômeno das pessoas que não desviam de mim nas calçadas. é como se elas não me vissem, achassem que seria possível eu sumir, me desintegrar ou toda uma suposição de que EEEU tenho obrigação de fazer de tudo pra não atravessar o caminho de one more alecrim. porque elas não fazem menção alguma de desviar, vão reto, na rota de colisão. não existe mais aquele velho acordo tácito de cada um abrir mão um pouquinho pra todo mundo passar com pressa em paz, uma coisa chamada educação básica. o clima é aquele terror do cada um por si. às vezes me revolto e não desvio, quando EU estou no meu dia de egoísmo. deixo rolar pra testar limitsss #perigosa
outro workshop de egoísmo foi em uma exposição frenética na pinacoteca de são paulo. tem escorregador, casa gigante de joão de barro pra entrar, sala de colchões pra interagir etc. a artista ótima faz há 40 anos exatamente esse questionamento sobre limites entre arte e entretenimento, então por um lado é ótima a ironia involuntária na exposição dela. acontece conforme ela previu.
mas ninguém sabe disso porque ninguém leu, porque ninguém lê nada mesmo (girando) e todo mundo tava ocupadíssimo ficando de costas para as obras enquanto tiravam selfies. uma gritaria, uma correria, filas intermináveis, um cheiro desgraçado de chulé (pra entrar nas obras precisava tirar o sapato), uma horda de crianças e adultos sem limite. o que importa é escorregar fazendo barulho no tobogã, fazer selfie, se atravessar na frente das pessoas, postar e ir embora, foda-se se tem mais pessoas: cada um vai viver intensamente a minha experiência como se estivesse na sala de casa. saí de lá com ódio, conforme previsto, aproveitando o mínimo enquanto 2937592834 pessoas viviam a plenitude do seu egoísmo.
na pinacoteca ou em outro espaço-tempo, não deixem de conhecer marta minujín, ela é argentina, batom no dente, ícone da pop art latino-americana.
mas sei lá. saudades quadros e pinturas simples, um monetzinho, um DI, uma tarsilinha básica. tá um inferno o lance da arte - sei que estou sendo elitista, deveria ser a glória um museu cheio.
mas será que TUDO PRECISA ter um clima de tiktok com pessoas gritando e posando? porque tudo hoje precisa ser divertido, uma experiência interativa, um constante se atravessar na frente dos outros - afinal todo mundo é “””produtor””” de “””conteúdo”””. eu estou em 1998 questionando o povo tirando foto de obra de arte porque geralmente já tem em alta no google.
estamos perdendo nossas linhas tênues conquistadas
(eu com 80 anos de cabelo rosa na minha motinha a 80km/h na rua augusta).
onde esse egoísmo todo vai parar? seria possível retomar um ambiente mais gentil ou estamos num ponto de não retorno? ou sempre fomos assim?
mas o importante é que você não leu isso agora.
então relaxe como se nada tivesse acontecido (girando).
6 coisas ótimas que são o puro suco de brasil
esse post do chico felitti sobre a geração Z é a coisa mais saborosa das últimas semanas, com um destaque especial para a última tela (cliquem na imagem e só vão indo).
o filme carvão, disponível na globoplay, é uma excelente surpresa. primeiro porque é maravilhoso ver maeve jinkings atuando (dia desses tomei café em santa cecília e ela tava lá, com seu maravilhoso dog JORGE e me segurei pra não tietar); segundo porque é cada plot twist, com um toque bizarro e de tragicomédia que me deixaram num estado de incredulidade constante. uma família super humilde toma uma decisão polêmica e esconde um estrangeiro em sua casa - a partir daí, rolam situações que apontam para discussões interessantes sobre limites e a moral, mas sem lições edificantes.
o que dizer sobre a épica série cangaço novo, do prime video? simplesmente tudo. foi uma semana muito feliz a que passei acompanhada de dinorah, ubaldo, zeza e todo o povo de cratará, em uma trama que reserva mil reviravoltas e é muito bem estruturada. as histórias de uma quadrilha de ladrões de banco no interior e do paulista em busca de uma herança se cruzam e tudo começa. em uma época na qual as séries são alongadas até não dar mais, aqui é um exemplo de roteiro, montagem e edição de som muito competentes. o carisma do elenco é absurdo e quero uma segunda temporada com mais dinorah, diva absoluta. inclusive a atriz alice carvalho é ótima no twitter, busquem.
a newsletter de
sobre café como refeição é um primor. li num gole só as deliciosas descrições das comidas, dos momentos e sentimentos envolvidos nesse ritual do café do fim do dia, que é um patrimônio afetivo dos brasileiros que precisava ser mais enaltecido.o filme retratos fantasmas é uma pérola. começa com o diretor kleber mendonça filho narrando sua história no apartamento onde vivia em setúbal (bairro do recife onde também morei, então rolou uma nostalgia) e depois ele amplia o cenário até alcançar os antigos cinemas do recife antigo. e aí, minha gente, é coisa de louco a coleção de momentos bonitos. ele falando de como os letreiros de cinema ilustram momentos da cidade e das pessoas, criando certas ironias involuntárias (ou não) em alguns episódios, é uma das minhas partes preferidas. as histórias dos prédios, incluindo um cinema com propósitos nazistas, é uma aula de historia e arquitetura. mas o que mais amei foi a onda de sentimentos que me invadiu ao final - um tanto de melancolia por assistir à ruína de tantos prédios/pessoas, mas também algo meio sublime que não sei bem explicar. saí levitando e recomendo muito - é para ver no seu cinema do coração.
o podcast collor vs collor é viciante. tudo é um deleite, cada detalhe. desde os áudios antigos acelerados de entrevistas, as personalidades dos envolvidos, toda a mitologia de alagoas mesmo antes de fernando collor e, claro, a lembrança de todos aqueles ícones da infância e dos noticiários. lembro que minha mãe assinava a revista manequim e ainda é vivíssima na minha memória a edição com os terninhos coloridos de rosane. a estética de cascata da dinda, assassinatos e outras coisas envolvidas sem dúvida renderiam uma obra de arte, uma série ou um excelente podcast como esse. os anos 1990 no brasil foram um experimento, e esse podcast pode provar.
sextou com esse hino de naomi jaffe
tudo a ver com o tema do egoísmo nessa edição : }
essa edição deveria ser edição PISTOLA hahahahhahahahaha.
mas pensei numa coisa aqui. sobre o lance do "não é pra ler agora... só pra não esquecer". aliás uma coisa não, duas. Primeira é a ideia que as notificações de celular ficam ligadas o tempo todo. não seria a hora da gente deixar no "não perturbe" até pra podermos "sair da internet" um pouco?
segundo ponto é, se considerarmos um absurdo a pessoa mandar uma mensagem tarde da noite só pra não esquecer e, consequentemente incomodar a outra que já estava quase adormecendo, estamos reiterando a ideia de que recebemos uma mensagem e somos automaticamente obrigados a respondê-la, ou ao menos visualizá-la, ou seja, reforça a ideia de de imediatismo e disponibilidade?
o ponto alto da edição: "tá um inferno o lance da arte"
TÁ!
"Pq hoje tudo tem que ser divertido?" Me pergunto todos os dias em situações diferentes