.protagonismo
#90. volteeeei. sempre no centro. nossa interface com o mundo somos nós mesmos. perigosamente individualistas. delírios de ser insubstituível. desfile de rostos. 6 dicas boas de ler, ver e ouvir.
poucas coisas são mais fáceis na vida do que entrar numa espiral. de repente você não tá fazendo nada, algo te captura e vai se apropriando da sua consciência, assume o controle dos pensamentos, você vai girando (sempre giramos aqui na flowsmag, para quem chegou agora) e tudo foge do controle repentina e intensamente. é super fluido fugir do controle, você se distrai e perdeu.
foi o que aconteceu comigo nessas últimas semanas, em que deixei de escrever a newsletter. começou com uma semana em que tive muito trabalho, nas outras tive muitos exames (o eletrocardio acusou uma parte inativa do meu coração - pode ter sido defeito do exame, defeito meu ou apenas a constatação de que sou aquariana, daí precisarei repetir). rapidamente o tempo de dedicação à escrita evapora, tento voltar a escrever e vejo que perdi a prática, tudo vira um drama, me vejo cansada, começo a girar e olha ela, a falta de controle esperando um buraquinho na minha mente.
até mesmo escolhas nossas e coisas que a gente gosta de fazer
podem nos sobrecarregar.
depois desses loopings da vida, venho tímida pedir muitas desculpas por esse recesso (o maior desde o início da news) desavisado e nada programado. toda semana eu jurava pra mim mesma e nada dava certo, tudo me afastava da escrita. mas tô aqui, gente. boralá (tapa na cara). loka ahaha
depois de três parágrafos sobre mim, digo que o tema hoje é protagonismo ahahaha. enfim, coerência nunca foi meu forte - e ainda bem, porque gente muito amarrada em conceitos me assusta um pouco, sou da turma que muda de ideia mesmo. nesse período sem escrever, algumas pessoas me perguntaram se eu tava bem, se a news ia continuar, mas em resumo o mundo seguiu girando graças a deusa. e eu, que nunca me dei muita autoimportância, segui na minha insignificância super em paz.
não é modéstia nem autodepreciação, é mais uma tranquilidade de ser um grão de areia mesmo, de não me colocar numa posição de demandar atenção ou precisar dela pra existir. normalmente sou discreta (exceto quando tomo vinho tinto) e nem sei lidar com reconhecimento, mas sei que teve gente (3 membros) que sentiu minha falta. e tudo bem quem não sentiu - fico inclusive aliviada por não ser importante pra muita gente. tira uma pressão dos ombros, sabe.
deus me livre alguém me cobrar porque não fiz stories ontem, sei lá. não ser vista nem ser lembrada pra mim IT’S A GIFT. sei bem como isso soa mal humorado em tempos de redes sociais, produção de conteúdo e consumo de tudo.
nunca gostei de protagonismo, daí nesses dias me dei conta que estamos vivendo um grande momento para pensar nesse conceito. antigamente (2012), junto com a palavra protagonista vinha o sufixo “de filme” ou “de novela”, mas nunca “da própria vida”. essa coisa de estar sempre no centro e a nossa lente de mundo virar a única realidade sempre existiram, mas acho que todos concordamos que chegamos a um ponto crítico. a sociedade
do self,
do selfie,
das bolhas,
do sucesso,
do celular,
do influencer,
do “propósito”
da autoajuda,
da “experiência”,
do autocuidado,
do empresário de si,
do “reconhecimento”,
do computador pessoal,
dos testes de personalidade,
da terapia para se descobrir cada vez mais,
da performance individual medida e comparada,
de todo mundo com seu canal produzindo conteúdo (péssima essa frase),
nos reenvia o tempo todo a nós mesmos. esse conjunto de fenômenos não me parece casual e vem nos tornando perigosamente individualistas. do individualismo para a alienação, a indiferença, o egoísmo e a violência é um passo - como já sabemos.
claro, tem coisas boas em se colocar como protagonista, se valorizar, se empoderar, se priorizar e se amar. a autoindulgência ou o “momento delícia” (amoo) de que fala a
diz muito sobre cada um de nós ser a unidade básica em torno da qual o mundo gira.se eu não vi, não fui, não provei, não sei ou não gosto, aquilo é descartado ou vira objeto de inveja. tudo precisa ser em relação a mim para ter importância. se antes a sociedade reproduzia sua cultura “suas normas, suas premissas subjacentes, seus modos de organizar a experiência - no indivíduo, na forma de personalidade” (A Cultura do Narcicismo, p.94), agora me parece que o caminho é mais difuso e algo emana também do indivíduo, fazendo um caminho contrário. como se narcisismos somados pudessem influenciar a cultura.
se antes a família, a escola, a igreja, o trabalho e outras relações ajudavam a nos modelar e neutralizavam nosso protagonismo, hoje parece que o self inflado não quer ser mais visto como tão permeável e adquire uma pretensão de poder e solidez. a galera entra nuns delírios de ser insubstituível. eu conto ou você conta?
pessoas focam um tempo e uma energia imensos na autoafirmação e na criação de narrativas sobre si, pequenas historinhas para construir sua performance no mundo. o copo com o livro e o cigarro fotografados 18 vezes até parecerem espontâneos. aliás tomar um café e ler um livro virou conceito, reescrito e fotografado mil vezes. tipo aquele livro Exercícios de Estilo, de Raymond Queneau, em que ele reescreve umas 50 vezes a mesma história que se passa dentro de um ônibus, tem umas confusões e no final uma das pessoas do ônibus é vista na rua. ele faz uma descrição simples, poesia, faz um soneto, mil formas. acho uma delícia, me marcou na faculdade porque jornalismo é isso mesmo. ou era.
as pequenas historinhas de si podem assumir formas sutis, como a reafirmação de um estilo de vida no instagram, mostrando desde detalhes do cotidiano e rotinas até depoimentos sobre os sentimentos mais profundos pra conquistar empatia e mostrar vulnerabilidade. aqui a senha para entrar na fila de mostrar vulnerabilidade na internet está no número 293759.
em comum, a câmera geralmente aponta para si e suas coisas, não olha de fato para o mundo. e mesmo quando olha, é um ponto de vista. claro que tudo é um ponto de vista, mas o jeito de colocar sinto que mudou (no meu ponto de vista kkk). “fulano morreu, mas eu conhecia e estava lá”: “eu conhecia e estava lá” acaba ocupando um espaço maior do que a morte do fulano. o eu sempre colocado no centro, mesmo em situações extremas em que o outro claramente seria o protagonista.
é inquietante - e pra mim ainda não é natural - ver um desfile de rostos (RÓSTOS) nos meus stories com as pessoas sendo protagonistas (ou narcisistas) o tempo todo. se todos se exibem, quem está assistindo? se todo mundo é protagonista, não vai haver espaço nem tempo possíveis pra acomodar tanta estrela da globo. é uma sequência tão grande de eus que isso já foi normalizado há tempos. tanto que se a pessoa tira foto de paisagem e não aparece é porque certamente tá triste. quem tá feliz e “de bem consigo mesmo” aparece ou aparenta, pelo menos.
tem algumas abordagens clássicas de alecrinismo dourado:
a pessoa iluminada: “só eu que vi tal coisa?” (algo que tá na home de todos os portais)
a sistema métrico do planeta: se ela odeia algo isso é o parâmetro e ninguém mais pode gostar
a pessoa bandeirante: no momento em que descobre algo, tal coisa passa a existir, tipo uma música, uma roupa ou um bar, mesmo que o bar esteja há 50 anos no lugar
a pessoa que trocou de lugar com o sol em nosso sistema: no momento em não observa mais alguma coisa acontecendo, acorda e decreta que aquilo morreu, pois ela é o referencial mor
um exemplo do ponto 4 é a micro-polêmica que bateu na minha nano-bolha sobre o possível fim da crônica, na extinta rede social twitter. o fim de algo é sempre um aposta ousada - o cinema segue, assim como o livro impresso, a política, a história e outras coisas que já tiveram mil atestados de óbito. longe de mim criticar o autor do fim da crônica, mas me parece uma percepção individual decretando todo o destino de um gênero literário que tá rolando e tem muitos praticantes. o ápice do protagonismo é partir do seu ponto de vista e cravar uma coisa assim, tipo “a morte de um olhar discreto e franco sobre a vida”. well.
a forma de escrever neste caso é meio diferente de dar uma opinião, trazer um ponto, abrir um espaço pra divergência: a pessoa acha que, como acabou pra ela, acabou pro mundo. this is autoestima.
prefiro achar que quase tudo é causado pela presença excessiva das bolhas na interface com o mundo. se antes nossa interface com o mundo era a pele ou o olhar, quando éramos simplinhas, agora tem as telas, 5 camadas de pop-ups, propósitos capitalistas a serem desvendados em todas as mensagens e todo um direcionamento de algoritmos.
é difícil sair disso e ser livre, uma vez que estamos sempre retornando a nós mesmos. estamos presos dentro de nós? a gente fica se reencontrando num looping eterno e ainda lutando pra ser o primeiro, pra aparecer, pra ser reconhecido. é uma maluquice e meio que um pesadelo, se a gente parar pra pensar. todas as portas que abrimos levam a um mesmo lugar, e o capitalismo sustenta a ideia de que somos únicos e que o consumo é uma forma da gente se sentir bem, da gente ser mais “a gente”, vendendo um protagonismo ilusório de views em stories com histórias que inventamos pra criar o enredo de nossas vidas. pode ser divertido, mas ao mesmo tempo não.
aí quando o mundo real nos coloca em nosso lugar - nem sempre de destaque positivo na prova de cupcakes -, a gente se choca, tem raiva, se deprime, não sabe processar a frustração de estar num lugar que não seja o mais alto.
mas claro, esse drama todo pode ser só coisa da minha bolha =)
para ler, ver e ouvir
dois podcasts de que gostei muito e coincidentemente escutei quase numa mesma semana. o que me fez sentir que o tema do protagonismo anda quente. boa noite, internet e caoscast (tem outros episódios ótimos deles). uma louça lavada com qualidade e conteúdo.
drops of god (apple tv+). quando me vi gostando de uma série sobre uma competição de degustação de vinhos, nem acreditei. mas é isso mesmo. um super especialista morre e sua herança milionária é disputada pela filha dele e pelo melhor aluno da classe de enologia. tem pequenos babados acontecendo, locações de tóquio a paris, plot twists e um roteiro conciso. amei o ritmo suave, tem dias que a gente quer de fato relaxar vendo série.
paraíso (netflix). nessa ficção científica é possível vender anos de vida pra pagar uma faculdade ou uma casa, por exemplo. há uma empresa dedicada (óbvio) a recrutar pessoas necessitadas dispostas a abrir mão de 5, 15 ou mais anos da vida, que são transferidos a quem pode pagar (pessoas ricas e bancos). é capitalismo na veia essa premissa. ainda que o desenvolvimento não seja ohhh e você saiba nas primeiras cenas como vai terminar, valeu pelo entretenimento.
na frança com madonna (globoplay). amei esse documentário que mostra a quantidade imensa de artistas e profissionais franceses essenciais na trajetória de mainha, entre bailarinos, cabeleireiros, estilistas. além de influências francesas no comportamento e tal. destaque para a cena dela cantando no meio da praça da republique, quase sem segurança, pra uma rodinha de fãs depois daqueles atentados em paris. admirei.
as primas (editora fósforo). livro deliciosooooo. simplesmente a autora, uma senhorinha argentina com fotos ótimas, foi descoberta por acaso. o manuscrito dela foi lido por uma jurada de um pequeno concurso, aí ela ficou WHAAT e depois comentou com outra jurada. todas perplexas - ou isso é muito bom ou é muito ruim, mas é no mínimo original. aurora venturini foi premiada e finalmente a escrita dela reconhecida. a história é de várias mulheres que vivem juntas, quase todas com questões de saúde e locomoção, até que uma delas vira pintora de sucesso. é pelo ponto de vista dela que entramos em contato com pensamentos sarcásticos e também com algumas situações de violência - ela passa do excêntrico ao brutal em segundos. adoro que a narradora, que não conhece bem as palavras, avisa toda vez quando usa algo do dicionário e se cansa de pontuar o texto com vírgulas. de repente ela coloca entre parênteses no meio do texto “descanso” e a gente entende exatamente. é tipo um pacto com o leitor. adorei.
feliz de sextar com vocês de novo.
vamos falando, bora marcar.
e gente, agradeço demais aos novos assinantes que apareceram por aqui, mesmo eu estando ausente. obrigada pelas leituras e comentários de sempre! e quem desejar apoiar um cafezinho ou mesmo livros e cursos (uso o $ das assinaturas pra devolver em forma de conteúdo e paz por aqui), vale cogitar uma assinaturinha paga, que tals. joguei. beijos!
Bom dia!
Ontem à noite passou na TV Cultura uma entrevista com o escritor Tariq Ali no programa Incertezas Críticas. Eu vi apenas alguns trechos e me lembrei agora ao ler o seu texto. Ele estava comentando sobre a influência de escritores latino-americanos como Gabo e Vargas Llosa em nossa cultura e que na Europa dificilmente aparece um escritor que cutuca as mazelas porque as pessoas preferem a literatura centrada no "eu". Eu isso, minha vida, minha sexualidade. Fiquei pensando até que ponto essa cultura narcisista não é incentivada para justamente esquecermos o outro, seus problemas e não questionarmos a vida como está.
Depois da entrevista eu fui buscar algumas informações sobre ele (não conhecia - será ele um cancelado na websfera? Não sei e melhor não saber rs) e comprei um livro na Estante Virtual, "Sombras na Romanzeira". Antes de finalizar a compra fui fazer alguma outra coisa e quando voltei o livro já tinha sido vendido. Pensei: Ora, ora, ora, mais alguém estava vendo a entrevista e teve a mesma ideia rs. Voltei e achei outro exemplar.
Espero que as coisas melhorem por aí! Fiz um ECG esses dias e apareceu lá uma alteração, uma tal e onda t que está baixa, médica disse que não é nada sério, mas é para eu comer produtos ricos em cálcio. Boa sorte na repetição do exame :) .
cerca de três dias atrás eu estava justamente lendo a crônica sobre o fim da crônica e pensei "UÉ, faz tempo que não recebo nada da lu (alô intimidade internética) do flows. será que me descadastrei sem querer?" que bom seu retorno s2
gostei bastante do seu texto, mas confesso que concordo um pouco sobre "o fim da crônica". Já faz uns bons meses que eu venho acompanhando diversas newsletters, ou seja, basicamente um espaço para crônicas, ainda que não estejam todas enquadradas nessa categoria, mas enfim. Os textos em geral estão muito individualistas, tipo, as pessoas parece que só falam delas, alguns ficam chatos demais. Confesso que ainda não elaborei suficientemente tudo isso (tenho algo escrito mas nada pronto), mas me parece que as crônicas ultimamente tem sido "SOBRE mim". Ando lendo também livros de crônicas (alguns antigos até) e sinto falta do ar bem-humorado, com pequenas doses de ponto de vista/vida pessoal, mas trazendo algum tema mais abrangente, mais interessante do que simplesmente reflexões sobre todas as problematizações do planeta. ficou confuso? kkkk beijinhos