.ambos
#87. determinismo de experiência. estar certo e errado ao mesmo tempo pode ser possível. o risco de transformar pessoas em cristais. mais links de succession. completamos 2 anos de flowsmag ;}
o que o escritor itamar vieira jr. & a série succession tiveram em comum nessa semana? todos estão certos e errados ao mesmo tempo. e acho que o meu possível hoje, tava pensando esses dias, é enxergar algumas coisas ampliando percepções para caber e tentar acomodar melhor o mundo indecifrável que construímos. questão de sanidade e sobrevivência, aprender a lidar.
mas boralá, essa news pode ser lida super em conjunto com a edição .disclaimers, no sentido de que muitas coisas podem ser polêmicas de se pensar. mas é preciso não deixar de pensar, sempre que der. meu nome é longe e meu sobrenome é de mim causar intriga.
sobre itamar vieira jr. impressionante como ele atingiu uma marca histórica de vendas de livros no brasil (fico até arrepiada) e gosto do que ele escreve #disclaimer. mas ele e sua obra são irretocáveis e imunes a críticas? não. ou não deveriam ser. o risco de transformar a pessoa em cristal é que isso interdita o debate. e o ponto: em relação às recentes críticas que recebeu, ele está certo e errado ao mesmo tempo.
certíssimo porque ele aparentemente é alvo de uma campanha pra desqualificar a obra, em uma reação que tem ocorrido diante de qualquer unanimidade. na hora em que algo é incensado, despontam os grupos de twitter atacando, os esclaceridöes da turma do não é tão bom assim, colocando tudo em xeque até minar a credibilidade da obra. e acho que isso vem sendo feito, de certo modo, contra itamar - e também rolou contra succession quando o sucesso aumentou.
ao mesmo tempo, é preciso garantir o espaço da crítica literária, que nem sempre vai ser feita por uma pessoa da mesma cor, região ou condições de vida do autor, concordando com todos os pontos da obra. o princípio da boa crítica é (ou era, já que tudo ruiu, não é mesmo) exatamente o distanciamento do tema em debate. qualificar crítica literária como racismo e comparar ao que aconteceu com vini jr me pareceu meio extremo, apressado e bem complicado, pensa bem. mas é claro: se o autor se sentiu vítima de racismo, simplesmente o debate se encerra na mesma hora - afinal, se ele sente, é suficiente e ninguém tem direito de questionar.
longe de mim de falar sobre os limites do humor, deusa me livre (até porque o limite do humor é a inteligência, caso alguém me pergunte depois). mas precisa continuar a ser possível um crítico ou um leitor apontar de forma republicana que não gostou de algo, que tal personagem poderia ser mais desenvolvido, que isso ou aquilo não funcionou, se achou pior que o anterior, entre outras coisas. ou melhor nem publicar, porque ser lido traz consequências. eu aqui me colocando em uma zona de alto risco ahahaha socorro.
tudo pode ser escrito sem ofensas e lido sem ser levado pro lado pessoal. duas ou mais pessoas precisam ter abertura na leitura de qualquer texto. mas perdemos esse mínimo e já escolhemos um lado rapidamente, sem nem terminar de ler o texto. vira uma repercussão em cima do que foi comentado e em cima de aspectos colaterais, um inception de repercussão, e não se fala sobre o que foi originalmente dito. o bololô que isso cria não tá escrito. ou está. por toda parte. tudo é bololô.
estamos na greve dos roteiristas,
mas há anos entramos na greve de argumentos
daí, infelizmente, a gente tem que citar aquele começo infeliz de frase, geralmente mal utilizadíssimo, o famoso agora nem pode mais. neste caso não é uma lamentação convencional sobre nem poder mais ofender as pessoas em paz pra fazer seu stand up hétero publicitário branco, que largou tudo inclusive a sensatez.
meu lamento, ao contrário, é de que agora nem pode mais debater ideias porque a pessoa tá no lugar de fala dela, na experiência dela, na cidade dela, no corpo dela, ouvindo as vozes da cabeça dela e só ela sabe a história dela - então só ela mesma poderia se autocriticar e conversar com ela própria. essa pessoa tá: certa e errada ao mesmo tempo. é nessa encruzilhada contemporânea onde estamos. eis um dos debates mais fascinantes e ainda pouco falados sobre o atual momento.
tipo, uma pessoa do sudeste falando de uma obra literária do nordeste precisa ser sempre a reedição de algum trauma colonial? sim e não. claro que entendo os traumas coloniais e sei que não sofri 90% das violências que eles geraram para outros grupos da população, mas há que escolher algumas batalhas. nem tudo é mal intencionado, extremo ou algo a ser combatido, como a internet e a realidade insistem pra gente acreditar. às vezes é só uma conversa. uma conversa que nem necessariamente precisa levar a um lugar ou atravessar ninguém. às vezes são duas pessoas certas de opiniões diferentes debatendo, ó que lindo. é possível (cantando imagine)
esse a priori de que qualquer opinião é uma agressão ou invasão do lugar de fala anda impedindo muitas trocas. se só iguais podem falar entre si, o resultado vai ser um pouco o que já temos visto em vários produtos culturais, de livros a filmes, passando por peças de teatro e outros: são grandes monólogos sobre a interioridade e a experiência única e visceral de cada autor em seu próprio habitat.
“só eu posso falar sobre mim” está nos levando ao
“só posso falar se for sobre mim”
e eu flows vou dizer o quê? que essas pessoas estão erradas e certas ao mesmo tempo. é assim que o mundo tem funcionado ultimamente, isso meio que desbloqueou uma chave em mim. às vezes, cabem ambos. é super legal falar sobre si. ao mesmo tempo, é super estranho falar sobre si.
esses dias eu tava vendo um reality de culinária (mais um, me deixa) chamado million pound menu (netflix), em que jovens cozinheiros apresentam seus projetos de restaurante para investidores. uma das duplas era claramente inglesa e queria vender comida tailandesa. um dos jurados pergunta: tá, mas e se alguém questionar sua autenticidade? o cozinheiro falou tudo o que penso, respondendo (em outras palavras) que porran, você não precisa ser tailandês pra vender comida tailandesa, nem todo mundo tem uma nonna tailandesa ancestral que é inspiração, assim como tailandeses não estão fadados a fazer só comida da tailândia pra sempre como se fosse um grande destino.
nos convenceram muito sobre essa espécie de determinismo de experiência, essa prisão da autenticidade, que talvez derive do conceito de lugar de fala reapropriado e desconstruído mil vezes. chegamos ao ponto de que se você não tem a experiência mais direta ou se não tem um pós-doutorado no tema, melhor ficar calade.
ao mesmo tempo, são ingleses se apropriando de uma cultura que tem menos poder econômico e político no mundo, a tailandesa. o certo e o errado convivem, basta virar a conjunção. tudo tem dois lados e os dois lados poder estar certos - ou errados.
e eu quase esquecendo de succession (hbo). mais um ótimo exemplo para nosso tema ambos. amei a final, antes de mais nada preciso dividir com vocês. a série mostra de forma extremamente sensível como o certo e o errado são sempre tão próximos, às vezes difíceis de separar. não faço aqui o exercício de relativizar coisa alguma, que fique claro. a ética não é fluida.
é mais um exercício de pensar sobre como bilionários desprezíveis com zero caráter (e que vão piorando a cada temporada) conseguem nos envolver e despertar empatia - não simpatia -, a ponto da gente se importar com o destino deles e de sua imensa empresa (mas nem todo bilionário). coisas certas e erradas vão ali acontecendo o tempo todo, e acredito que essa dinâmica do estado atual das coisas na vida real foi um dos pontos que nos conquistou, porque é muito intrigante quando até a pessoa mais errada daquele universo possa virar o sujeito certo em um dado momento.
é possível - olha a loucura - duas pessoas com opiniões opostas estarem certas ou erradas, ao mesmo tempo. ambas. todos esses arranjos têm feito parte da vida e tenho remado contra a maré (aquariana) enxergando o mundo não apenas como um derivado da minha visão de mundo e das minhas experiências. explorar outras lentes além das nossas próprias é cada vez mais difícil, dado o excesso de personalização e padronização no consumo e nos algoritmos. é mais simples e viciante tratar o mundo pelo próprio ponto de vista em vez de se esforçar pela complexidade. e eu entendo. várias vezes desisti de conversas quando a pessoa insistia que o que ela achava era a única interpretação possível, tipo nem deus deve pensar assim, então deixa. aquilo de escolher as batalhas - e eu geralmente escolho nenhuma. exaustah.
é de novo a frase do fitzgerald (já postei em alguma news anterior) do livro crack-up, com a qual eu não poderia concordar mais: o teste de uma inteligência superior é a capacidade de manter duas ideias opostas na mente ao mesmo tempo e ainda conservar a capacidade de funcionar.
até pouco tempo atrás, o segredo pra entender a vida e se dar bem era distinguir entre o certo e o errado.
me parece que agora o lance é entender que há coisas que só são compreendidas quando o certo e o errado são simultâneos.
a partir desse entendimento, que antigamente a gente chamava de mixed feelings mas acho que é bem mais do que isso, a gente constroi as perspectivas e as nossas tentativas de navegar. e precisamos saber muito bem o que é o certo e o errado pra conseguir entender quando esses limites são borrados e quando é possível que ambos convivam, porque não é sempre que dá.
eu nunca disse que seria fácil.
gente, e em 28 de maio completei 2 aninhos de flowsmag! a primeira edição foi essa e sem palavras para agradecer a todo mundo que lê desde 2021 e desde ontem.
muito feliz e chocada sempre em como isso cresceu de uma forma tão discreta (meu jeitinho) e como minha escrita tem evoluído horrores nesse período.
links sobre succession mas não apenas
o fim de succession, vivian gornick e uma declaração de amizade
laurinha lero está com uma ótima news (morri com a parte do feet prision e do seo)
essa senhorinha de 90 anos saltando de para quedas nhommm
sextooou
it's my life
que texto brilhante!!! de fato há momentos em que duas pessoas podem estar certas e erradas ao mesmo tempo, mas o que mais me preocupa é essa interdição do debate, que é o que vem acontecendo na maioria dos campos, principalmente sociais. É tudo muito estranho, porque ao mesmo tempo que se tem falado muito de "coletivo", as narrativas acabam sendo mais individuais do que qualquer outra coisa.
Lu, acho que ainda tô muito sob o efeito disclaimers pra comentar tudo que queria, mas, cara, como amo a flows!
p.s. e tudo bem se eu seguir repetindo toda edição que eu não vivo sem sua curadoria de tweets?!