.disclaimers
#83. longe de mim causar intriga, é sobre isso e tá tudo bem. uma ressalva de palmas. dica de um documentário ótimo: chocada, porém jamais perplexa - e vice-versa.
saudade de quando no máximo a gente falava que longe de mim causar intriga e tava tudo certo, podíamos simplesmente abrir uma latinha e começar o assunto. hoje somos pessoas prestes a odiar1 e passamos a uma cultura do disclaimer. ela impõe a leitura de uma extensa carta de intenções precedendo qualquer conversa.
renderia um esquete (idosa) muito bom, esse excesso de preâmbulos: no final de meia hora de disclaimers, a fala se encerra, a pessoa esquece o que ia dizer e cai a cortina. esse pré-texto costuma girar em torno de coisas como:
afirmar que você se propõe a falar do seu próprio lugar, longe de você invadir o lugar do outro e causar intriga
ressaltar que é só uma opinião em um recorte de tempo, espaço, gênero e classe e existem muitas opiniões possíveis no mundo, com as quais nem todo mundo precisa concordar ou se ofender
lembrar que você não leu todos os livros do mundo nem assistiu a todos os filmes do mundo nem foi a todos os restaurantes do mundo nem conhece todos os países do mundo para ter chegado àquela conclusão
ponderar que sua fala pode conter metáforas e comparações, mas longe de você causar intriga com quem não transa metáforas
pedir desculpas porque leu um livro ou viu um filme enquanto muitas pessoas não têm acesso ou tempo ou um sistema de privilégios que permita ver o filme ou comprar um livro
prevenir 42957982 vezes caso haja algum micro spoiler, tipo e jesus ressuscita no final
dizer que é impossível saber os gatilhos de cada uma das 6 bilhões de pessoas na terra
acalmar os ânimos terminando todas as frases com tá tudo bem e é sobre isso. e o tá-tudo-bem me soa às vezes como tentativa de amansar a audiência e se blindar.
enfim. até você chegar no final das explicações, talvez tenha até esquecido o que ia dizer. a cultura do disclaimer, no limite, pode levar a uma não-conversa.
mas é claro que flowsmag é um lugar que entende que certos disclaimers são necessários, pois são políticos e resultados de lutas muitíssimo importantes. tem disclaimer que é paula e nunca é demais. além disso, jamais vou falar que absurdo, agora nem pode falar mais nada, porque tem coisas que nunca poderiam ter sido faladas ever, em momento algum. tem piadas que nunca eram pra ter existido. tem pensamentos que em tempo algum estiveram certos. então acho uma armadilha a conversa do nossa, mas agora não pode nada porque tem coisa que NUNCA pode.
que nem ouvi ontem na tv: depois dos jogadores de um time de futebol abraçarem um técnico condenado por estupro, um dos homens entrevistados lamentou os novos tempos©️ que massacram as pessoas por tudo. fiquei perplexa, porém jamais chocada com a solidariedade doentia dos homens no futebol brasileiro. a ausência total de disclaimer, noção e humanidade são um problema - imenso, aliás.
enfim, a gente só queria poder contar já com a boa vontade e o bom senso, que costumam andar até juntos, e já começar a conversa ou o vídeo do youtube com um ponto de partida mais produtivo.
sabemos, a partir da nossa experiência de brasil oô, que a regressão progressiva dos pontos de partida tem levado a ignorância e ao retrocesso de mil temas. regressão progressiva: falei isso mesmo? enfimmm, vocês entenderam. é como se toda conversa recomeçasse todo dia, a gente precisando defender o óbvio - já ficou bem exaustivo isso, nível o ministro silvio almeida precisando explicar (lindamente) porque ele não ia aceitar receber UM FETO no meio de uma sessão do congresso, em mais um dia comum de medo e delírio.
não me espanta que as pessoas tenham deixado de pensar e fiquem sempre no mesmo ponto ou retrocedam, porque é mais cômodo voltar do que avançar. eu aqui bem narcisista vou me citar (incluindo aqui 1 minuto de ressalva de palmas):
(…) isso é uma reação à incapacidade crescente das audiências de abstraírem e carpirem elas próprias o terreno onde se dão alguns debates. era pra todo mundo saber de antemão que é impossível contemplar todos os pontos de vista mundiais em um podcast e apenas curtir o conteúdo e a vibe. mas não, de repente todo mundo se propõe a ficar ofendido ou a buscar incoerências e falhas em tudo, inviabilizando cada vez mais as trocas e conversas. na ansiedade de rebater, o povo nem escuta o que está sendo dito e já produz uma resposta bem definitiva. o ruído de comunicação é mais ensurdecedor que o silêncio da anitta.
e assim, nessa estrutura de bolhas e monólogos, vamos descendo a ladeira e perdendo a inteligência, que é algo construído exatamente nas relações e exige abertura, erros e acertos para se desenvolver.
da ultima news, .inteligência.
lembro de exemplos extremos e engraçados de disclaimers inocentes do passado, especialmente em programas de receita (idosa). podia render um programa do discovery, disclaimers inocentes do passado. por exemplo, perguntas vindo de pessoas sem muito bom senso. “posso trocar o leite por conhaque?” ou “não tenho chocolate, então posso fazer o bolo de chocolate sem?”. as respostas da ofélia eram variadas, mas o povo naquela época não tinha papas na língua.
notei uma evolução do disclaimer para os novos programas culinários, que agora trazem discursos como você pode substituir o pinhole no pesto por castanha de baru, nozes, castanha do pará, mas pode usar pinhole também se quiser (verídico). uma volta imensa pra explicar que pode usar qualquer castanha e beijos, só vai. e se não tiver castanha, o pesto dá certo também, pronto passou.
sei que esses exemplos não foram ideais, porque de fato há coisas que não dão pra substituir, mas é que o “acerte o sal no final” virou um “se você gosta de sal, pode colocar um pouco, é importante ter sal, mas longe de mim obrigar você a comer sal, então o meu gosto é diferente do seu, o importante é fazer a receita, coloque o que tiver na sua casa, o sal da sua cidade”.
sabe o que eu acho mais louco disso tudo? é que vivemos esse paradoxo (mais um) da exigência de 15 minutos de ressalva de palmas pra iniciar muitos debates; ao mesmo tempo, nossa sociedade anda extremamente violenta e dominada pelo absurdo com toques de niilismo, em busca de liberdade para odiar. sei que a turma do disclaimer nem sempre é a mesma turma do absurdo, mas essa convivência de excesso de cuidado para falar com a ausência de qualquer moralidade dá um bug meu universo.
e mais: até que ponto os disclaimers teriam como intenção colateral a orientação para uma interpretação “única e correta” daquele conteúdo?2 o disclaimer pode disfarçar uma pretensão de que aquele conteúdo é isento, sem viés, consciente de todas as pautas, fada sensata que não erra. ou então pode funcionar como retaguarda ou validação pra depois falar um monte de horrores, como vemos de vez em quando por aí.
disclaimers podem funcionar mais como protocolo, performance ou autogarantia do que necessariamente representarem uma reflexão ou uma responsabilidade assumida com a audiência.
é mais pelo medo de gerar uma possível rinha ou cancelamento por causa de biscoito ou bolachazzzz ou temas importantes. e longe de mim causar intriga com quem insiste que é bolacha.
um lugar ao sol
não é sobre a novela nem é publi, masss poderia ser - venho assistindo bastante aos filmes do Mubi, que tem um acervo muito bem curado e original. gasto um tempo inclusive lendo as sinopses, porque a maioria já traz algo de diferente que normalmente não achamos nas grandes plataformas. assim como tenho estado meio entediada com alguns lançamentos de literatura, muitos com os mesmos temas (e muito excesso de eus interiores viscerais), também sinto que pouca coisa tem me surpreendido nas séries e filmes dos estúdios maiores, mesmo que entre essas produções existam coisas boas (fim do disclaimer).
eis que esbarro em uma verdadeira antiga pepita documental, que é o documentário de 2008 chamado um lugar ao sol. o que achei mais pipítico nessa obra de apenas uma hora de gabriel mascaro é que ele simplesmente liga a câmera e deixa os entrevistados rolarem sozinhos ladeira abaixo. pra quem ama constrangimento, como eu, é um prato transbordante - e triste.
gabriel teve acesso a um livro que mapeava membros da elite brasileira e 120 e poucas pessoas dessas moravam em coberturas. dessas, 9 cederam entrevistas, em suas coberturas em são paulo, rio de janeiro e recife, que é a cidade do diretor. as opiniões mais absurdas do universo e a falta absoluta de disclaimer são intensas.
em dado momento, uma das pessoas solta que era bonito ver lá de cima as balas voando no morro do rio, pareciam fogos e os barracos eram casinhas de boneca. o filho da mulher deve ter 45 anos mas tem a letra e o vocabulário de um menino de 13. é estranhíssimo. outra senhora, cujo filho também merece toda a nossa atenção e julgamento, tem 50 câmeras em casa, um pet falso e comenta que estar em uma cobertura é estar mais perto de deus. o cara de são paulo, dono de casa noturna, é escandalosamente egocêntrico.
quando todos tentam esboçar consciência social é sempre um espetáculo do horror. impressionam a simplicidade e a sutileza dos takes - um deles mostra a praia totalmente na sombra, porque os prédios barram a luz do sol. as entrevistas foram há quase 15 anos e mostram uma atualidade terrivelmente impressionante. quanto mais se conhece essa elite horrível, mais a gente entende a profundidade do buraco do país.
e a conclusão óbvia: a elite econômica no brasil está a quilômetros de ser a elite do bom gosto ou intelectual do país.
sempre perplexa, porém jamais chocada e vice-versa.
um lugar ao sol vai sair nos próximos dias do Mubi (acho que em 30/4, mas confirmem, nunca confiem em mim no quesito datas) e aqui tem um link-presente do pra ver o filme lá.
e aqui, com uma qualidade não tão boa, no youtube.
👯♀️ sextou com um pé no rio
Ruído na comunicação. Sabe quando conversando com alguém querido por mensagem tem que ter disclaimer e etc? Nosssa
Nossa, eu faço muito disclaimer pra escrever, desde antes de ser modinha. Rsrsrs. O medo de ser mal interpretada, julgada etc era tão grande, que simplesmente desisti de tentar. Agora só escrevo textos na minha cabeça pras vozes que habitam lá tbm. Lol