.viagem & cogumelos
#12. manual de instruções do trem. medo de humilhações. pulei a cerca. cabeça careca. surto de riso. cogumelos pra salvar o mundo. somos todos micélio. gafanhotos vampiros. alice maravilhosa
sou um imã para situações e pessoas inusitadas. sempre alguém louco cola em mim, viro melhor amiga de gente improvável, atraio presepadas improváveis e afins. sou simpatizante do budismo e, ainda que meu conhecimento seja muito raso, tenho aprendido a acolher as coisas que me chegam e observo. alá a coisa passando, passoooou, aprendi, foi pro mundo.
aí coleciono histórias - de preferência com elementos da ordem do absurdo. eu sou esse potinho. lembrei então de uma história que tem alguns anos e alguns nonsenses pelo caminho, não tem desfecho nem sei se é engraçada. mas lembrei.
então fui fazer uma viagem com um amigo e a gente escolheu o meio caminho entre a frança (onde eu tava) e a espanha (onde ele tava). ‘que tal carcassonne’. ‘boralá’. e fomos nesse rolê aleatório, essa cidade que inclusive é tema de um jogo alemão de tabuleiro. a gente queria muito ir numa cidadezinha medieval, andar sobre muralhas, entrar em castelos vazios, essa energy misteriosa antiga pois estávamos estudando história, era a vibe do momento.
eu tava empolgada, seria minha primeira viagem longa de trem. devo ter chegado na gare de lyon em paris com umas 3 horas de antecedência, planejei as 5 horas de viagem com livros e músicas baixadas, sanduichinhos, compartimentos, tudo certo.
trem: modo de usar
na metade do percurso o trem simplesmente desacelera e para. no meio do nada. de início ninguém reagiu, pensei natural: oh claro, uma viagem longa, deve ser assim. mas depois de uns 20 minutos a galera começou a bufar. o motorista passou a dar desculpas genéricas pelo sistema de som do trem. outros 20 minutos depois, começa a ficar tenso.
você já espera a galera da frança quebrar tudo, fazer revoluções, barricadas e tochas, então o motorista manda nova mensagem. disse que tudo sob controle, mas que ele tava procurando NO MANUAL DE INSTRUÇÕES DO TREM como resolver. todas as instituições estavam funcionando normalmente, ele garantiu. a gente sabe quando isso é mentira, especialmente quem vem do brasil.
eu jurava que tinha entendido errado, nem sabia que existia um manual de instruções de trem, mas pela onda de indignação e bufadas vi que era aquilo mesmo. um tempo depois, o trem milagrosamente pegou no tranco, batemos palmas, nosso vagão era muito unido.
sempre tenho um medo secreto de cair de avião numa ilha e as pessoas não serem legais, rolar um lance tipo o livro o senhor das moscas. então bacana que nesse trem pessoal era ok.
e daí o trem parou de novo e seguiu lentamente até alcançar a estação seguinte - onde literalmente nos jogaram em outro trem que já tava saindo. e eu torcendo pra que fosse até carcassonne, porque né. vai que.
auto humilhação
eu era ingênua na época, ainda mais num país estrangeiro. morria de medo de chamar a atenção, de incomodar, de ser repreendida e não conseguir reagir a tempo. em outro idioma a gente sempre tem todo um delay, nunca conseguimos mandar à merda no timing que a situação exige. então quando entrei no novo trem fiquei com vergonha de sentar. ou seja, as quase 3 horas seguintes de viagem FUI EM PÉ numa junção entre vagões, com a força do core, porque eu não sabia se o assento da minha passagem anterior garantiria meus direitos no novo trem.
sim, preferi ficar num cantinho horroroso balançando só pra não ter a possibilidade de passar vergonha com alguém me expulsando de um lugar no trem e ser humilhada, A VIDA É FEITA DE ESCOLHAS. eu já tinha sofrido com minha falta no timing de resposta na primeira vez em que fui ao cinema em paris. uma senhora na poltrona ao lado ficou uns 3 minutos me encarando. e então perguntou indignada: ‘você vai comer pipoca durante todo o filme?’ e eu: ‘não senhora, imagina (já enrolando rápido meu saquinho), me perdoe, desculpe’, humilhada. quis sumir).
daí de volta ao trem. um casal super estranho que também viajava na junção (é o típico lugar em que gente sem ticket fica, fugindo dos fiscais) começou a puxar conversa comigo. coloquei fones, de nada adiantou (no começo da news eu disse que atraio pessoas assim) e eles começaram a pedir pra eu mostrar narbonne no meu mapa. eu sem entender o que era narbonne, tava com medo que eles roubassem meu telefone (brasil - voz da gal). abri o maps e falei: taqui gente, narbonne, beleza. e eles ‘ah, a gente vai pra lá, esse trem vai pra lá’. saíram e me deixaram com essa informação. e eu: ótimo, agora vou viver nas próximas horas a agonia de acompanhar o maps, nesse suspense, porque não tinha nenhuma certeza de que o trem pararia em carcassonne. segui na fé, na batida do trem.
combo medieval
em um milagre divino surgiu a pequena carcassonne e desembarquei. trem é um lance que não dá margem de erro, fica 2 minutos a porta aberta e é preciso agilidade. um frio, sem comer e ainda precisava encontrar a pousada a pé, porque nada de taxi, o combo medieval completo. saí da estação, fui seguindo o maps, passei uma ponte (sempre medieval), entrei numa micro rua sem luz (medieval) e a pousada ficava ali na reta. eu apavorada, afinal era uma rua escura e medieval.
tinha uma cerca no caminho e o maps meio que exigia que se passasse por ali. não relutei e PULEI a cerca alta de madeira, meu buda interior achando que era aquilo mesmo, que era ASSIM A VIDA. quando finalmente cheguei, meu amigo:
- meu deus, luuuu, que saga, 6h a mais pra chegar
- cara, pois é, ainda tive que pular a cerca
- que cerca?
- a cerca pra entrar na pousada, acho que tava fechado o lugar. você não pulou?
- ooo lu…
então descobri que pulei uma cerca medieval e vim andando por um pasto à toa. que era só andar mais um pouco para entrar NORMALMENTE por um portão como gente.
dia dois: a cabeça
enfim, abafa. vem o dia seguinte. a gente deu uma volta, carcassonne ótima, muralhona, vistas, centro histórico, cassoulet típico, o medieval que sonhamos.
de tarde meu amigo fala:
- pesquisei que aqui tem sauna
- gente, sauna em carcassone? why
- pois é, em todas as cidades que vou quero conhecer as saunas
- beleza (sempre sendo natural), pois vai lá e te espero na estação do trem, porque na rua tá super frio
e assim deixei meu amigo na porta da sauna, segui pra estação, comprei uma revista pra passar o tempo e sentei. eis que uns 20 minutos depois cai bem do meu lado uma CABEÇA CARECA. pensei ‘ok, deve ser um bebê’ e continuei a ler a marie claire. aí começou a ficar escuro, olhei pra cima e percebi que tava juntando gente ao meu redor, na verdade ao redor da cabeça, que percebi ser de um senhor idoso, não de uma criança. ele teve tipo um mal súbito, despencou no chão, oco, bem do meu lado. e aquele monte de gente em volta, eu não conseguia sair, as pessoas perguntando se eu o conhecia. eu já com medo de me associarem ao homem, então minha primeira reação foi fingir que tava atendendo o celular e atravessei a galera para sair daquela situação.
bem no auge meu amigo chega pós sauna e vê a confusão. ele pergunta:
- luuuu, o que houve?
- um senhor caiu agorinha do meu lado, bateu com a cabeça no chão
- você ajudou?
- não, na hora não reagi porque achei que fosse um bebê
- mas e se fosse um bebê?
- não seeeei, paralisei, fingi que o celular tocou pra sair do centro daquela história e não ser confundida com parente do homem, vamos sair daqui
e a gargalhada altíssima do meu amigo foi a deixa pra gente sair dali o quanto antes, enquanto chegava a ambulância. porque começaram a nos olhar estranho - e o senhor lá caído. espero que tenha ficado bem.
agora vocês já sabem mais uma verdade sobre mim: eu seria incapaz de prestar primeiros-socorros.
dois surtos
como estou relembrando meus tempos de historiadora e surtos de riso, uma história absurda: de fato um surto de risadas afetou mulheres na tanzânia por mais de 2 anos. outra história bizarra e não tão engraçada é a estranha epidemia em 1518 na qual as pessoas dançaram por quatro meses até morrerem de exaustão ou do coração na frança.
o mundo é louco demais.
e essa news carrega muitas coisas inesperadas.
fungou no cangote
depois da minha obsessão por plantas, agora é a vez dos cogumelos. a wired fez uma matéria sobre a promissora mycoprotein ou proteína baseada em fungos, que seria mais vantajosa do que proteínas plant-based pelo sabor e outras características. ao mesmo tempo, a marca stella mccartney (acho que é a terceira news com menções à família mccartney) desenvolveu um couro à base de micélio de cogumelos, super tecnológico, chamado mylo.
e aí chego no documentário maravilhosooo chamado fantastic fungi (netflix) sobre como nosso futuro em vários sentidos está neste reino. o documentário é curto, porém intenso, com entrevistados ilustres como michael pollan. mas a narrativa é centrada no micologista autodidata paul stamets e nas belíssimas imagens de timelapse que mostram os diversos tipos e funções dos cogumelos no mundo. tem até cogumelo bioluminescente. o advento da FUNGArt.
ao longo do documentário, a gente meio que se sente parte de algo, relacionados e envolvidos nas conexões quase neurológicas de cogumelos, no papel deles para a vida no mundo. o verbo aterrar ganha outra dimensão, vamos usar antes que gastem.
SOMOS TODOS MICÉLIO: poderia ser uma camiseta da renner.
só acho que em alguns momentos o pessoal se deslumbra demais com os cogumelos e a gente sabe da importância de ter responsabilidade em divulgações como essa, que precisam de base científica. o ‘veja, mamãe se curou’ comove mas não substitui uma pesquisa com fases, amostragens e métodos.
shitake forever
mas legal ver como em vários sentidos cogumelos são anticapitalistas - alguns remédios à base de fungos, por exemplo, controlariam em poucas doses doenças que hoje tornam milhões de pessoas dependentes de grandes farmacêuticas por anos. além disso, o capitalismo detesta a maioria das coisas que propõem abrir a consciência.
se o cogumelo incomoda o capitalismo, então vou com ele.
shitake desde criancinha.
e olha o que são as coincidências: essa semana encontrei um livro que me interessou, infelizmente ainda não traduzido, os cogumelos no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo, de anna lowenhaupt tsing. ela mostra o que um dos mais valiosos cogumelos do mundo e sua cadeia produtiva podem dizer sobre a destruição capitalista. e como a vivência colaborativa, ecológica, em paisagens multiespécies, são condição inegociável para continuar a vida na terra. mesma conclusão do fantastic fungi.
terror ecológico
um filme louquíssimo que vi também no final de semana passado - e no final a gente vai escrevendo e as coisas se conectam aqui, você não acredita - é the swarm (ou la nuée ou a nuvem, da netflix). um terror ecológico (gosto) francês (gosto tb) sobre uma mãe solo que cultiva gafanhotos numa fazenda para produzir farinha com eles, porque ela vê potencial no lance de novas fontes de proteína. aí ela tá passando dificuldades, os insetos meio que param de reproduzir e aí ela descobre que se der ALGO eles se desenvolvem.
vi críticas de que ‘ahh o filme não esclarece tim tim por tim tim todos os detalhes’, mas provavelmente são de pessoas que só assistem a esses filmes americanos com flashbacks explicativos, murais com fotos interligadas por fios coloridos e post its e outros artifícios para a preguiça de lidar com qualquer brecha - e gente, a riqueza está nas brechas, nas dobras, nos não-ditos, vai por mim. enfim, acho que a história de a nuvem traz elementos suficientes para ser compreendida e a gente sempre espera narrativas mais abertas e sem explosões de carros derrapando com tom cruise segurando um pen drive quando é um filme francês.
algumas coisas são previsíveis até, tem momentos filme b, mas achei que vale pelo entretenimento, pelas cenas de gastura e pelas discussões sobre paradoxos que culturas pretensamente sustentáveis podem conter. boa pedida para este ameno dia. o que é uma sexta-feira 13 para quem mora neste brasil 2021, não é mesmo.
alice linda
e já que boa parte dessa edição foi sobre nonsense e alucinógenos, vale incluir alice no país das maravilhas ou atrás do espelho. personagem maravilhosa de mais de um século e meio que só se atualiza. o victoria & albert museum está com a exposição imersiva curiouser & curiouser que eu queria demais ver.
claramente sou resultado de uma infância psicodélica lendo livremente alice no país das maravilhas sem muita supervisão de adultos, sobrevivente do pirulito que vinha com um pozinho anexo sabor metástase.
aqui um webinar gigante com várias explicações, imagens lindas e destaques da exposição, com legendas em inglês. uma pós em alice.
alô MIS, bora trazer pra SP, nunca te pedi nada. crio a camisa I MIS YOU de graça pra você.
instagram censurou este mamilo e a gente faz o quê, reposta. vamos enaltecer mais este poster maravilhoso de almodóvar, assinado pelo designer espanhol javier jaén que merece todos os créditos e cujas ilustraciones estiveram conosotres hoy.
brincou que paul stamets é um micologista de verdade? por isso deram esse nome ao personagem de star trek discovery que viaja por uma rede de fungos? estou pasma
Caramba! Que histórias!!! Essa doidera do surto de dança eu já vou referenciar na minha newsletter tb. Claro que vou falar quem me contou! =)