.sonhar
#06. sonhar é revolucionário. a possibilidade não é um luxo. hipernormalização. adultos infantilizados. quatro filmes em que as coisas fogem do controle.
um dos maiores sintomas do nosso tempo é ter parado de sonhar. nem falo de duas horinhas de sonho a noite, mas de sonhar mesmo. com força, de verdade, com alegria, com imaginação, soltinho, inventando algo sem tabus nem lógicas. hoje ‘sonhar com o futuro’ ficou meio cafona e sempre no rasinho: confunde-se muitas vezes com gerenciar problemas, lidar com novos perigos iminentes ou outra coisa meio prática e chata. falar de sonho, especialmente no momento atual, soa até ofensivo, escapista, um acinte diante dessa realidade tão dura e funda em que estamos. sobreviver já é luxo, imagina sonhar.
imagina sonhar.
então em certo ponto concordamos em parar de sonhar e pensar no futuro porque ‘sem tempo, irmão’. temos coisa mais importante pra fazer (pagar boletos). o mundo real (que, na verdade, é em si um misto de fato e ficção) inviabilizou o exercício de imaginação. aí a gente fica na timeline mesmo, é o que sobrou. o máximo de novidade e futuro que nos chega vem embalado em muito plástico por grandes empresas. comemora-se o novo iPhone sem carregador, mas que vem com uma camerazinha de selfie a mais e um iOS que traz muitas novidades irrelevantes.
mas é com isso mesmo que a gente tá se contentando? por isso hoje proponho um pequeno exercício aqui na nossa salinha para encontrar o ponto em perdemos a capacidade de desejar e de projetar algo de fato novo e interessante. criar novos mundos pra gente aqui nessa VIVÊNCIA.
pretensiosa, hein, essa news hahahaha. mas enfim, sonhemos.
a falta de espaço-tempo para sonhar é um projeto
foi minha conclusão depois de assistir ao documentário hipernormalização, de adam curtis, da bbc. curtis já fez alguns docs até famosos (como o século do ego), fala bastante sobre o aumento do individualismo e é conhecido por cumprir uma espécie de bingo de coisas iguais em cada um, como montagens vertiginosas de imagens, frases parecidas, referências a oriente médio etc. no geral são bons trabalhos de compilar uma imensa quantidade de informação (esse tem mais de 2h30, então vi em 3 dias), sem se obrigar a responder a todas as questões. ele faz muitas perguntas, dá um fio e a gente pensa o resto.
embora seja de 2016, hipernormalização é um dos docs que melhor explica a falta de perspectiva e de visões alternativas - especialmente coletivas - para repensar o mundo hoje.
a ideia central passa pela implosão da política. especialmente nos estados unidos e grã bretanha os líderes se dedicaram a produzir e disseminar uma visão simplificada e fictícia do mundo no lugar de encararem os problemas complexos e buscarem soluções.
o ponto de partida essencial foi o colapso da união soviética e o fim da ilusão de que uma solução alternativa (o socialismo) poderia rolar. no final dos anos 1980, o coletivo cede lugar ao indivíduo isolado que vai se desligando da realidade - imagens de jane fonda dedicadíssima a aeróbica aparecem como exemplo, comentando que ela trocou o socialismo por aeróbica kkkk. quem nunca, não é mesmo.
o poder tradicional dos políticos dá lugar ao poder da tecnologia e do mercado financeiro, que se impõe em uma nova lógica sutil, difusa e nada ameaçadora (portanto, mais difícil de lutar contra). o dinheiro desses grupos passa a correr para dentro dos estados, tornando todas as estruturas e decisões políticas dependentes do capital financeiro - isso vai resultando na gentrificação nas cidades, em “ajustes” que geram desemprego e desigualdade.
mudar o mundo passa a ser muito complicado e o pessoal desiste. sociedades inteiras pararam de sonhar e acreditar - e demonizam a política como algo velho, ineficiente e corrupto. o objetivo dos governos passa a ser apenas gerenciar e manter a estabilidade para as finanças, sem pensar em novos projetos de sociedade.
e AÍ É O PULO DO GATO. para manter a estabilidade necessária, entra em cena o que os americanos chamam de gerenciamento de percepção. é algo que conhecemos bem hoje: misturar fatos e ficção para manipular a realidade e a população não precisar entender ou lidar com problemas complexos.
criam-se inimigos da democracia (geralmente no oriente médio) e bodes expiatórios (também no oriente médio), tudo vira ‘a luta do bem contra o mal’ (o mal no oriente médio) e chegamos aonde chegamos, com trump e o genocida formalmente eleitos por uma manada que não sabe interpretar um semáforo.
em paralelo, dois atores fundamentais surgem: a internet e a inteligência artificial. a internet cria um suposto espaço de liberdade e de expressão individual, e a inteligência artificial ordena o mundo com cada um de nós ao centro, protegidos das dificuldades lá fora.
o universo se reduziu a “se você gostou disso, vai amar aquilo”.
o mundo estável reflete a sua personalidade e entrega conteúdos com os quais você concorda.
e o futuro? é algo perigoso, catastrófico, melhor o pessoal do vale do silício pensar nisso enquanto a gente fica liberado para consumir produtos e conteúdos nessa economia da atenção - atenta a tudo o que dança, brilha e fala com vozes estranhas nos stories ou no tiktok, menos a um novo projeto de mundo.
há quem tenha virado contra-apocalíptico porque bem melhor abafar o caso e pensar positivo. ainda assim surgem movimentos sociais, como a primavera árabe ou o occupy. contudo, eles são mediados pelo facebook, sem líderes, sem um ideal de futuro nem um vislumbre da sociedade que se quer.
parece haver um excesso de mobilizações que pouco alteram as estruturas e só enriquecem os donos das redes sociais.
com pautas tão difusas, os movimentos não apenas não se sustentam como criam um vácuo perfeito para ser preenchido por você sabe quem. novamente a política tradicional se enfraquece e seguimos governados por quem os bancos apoiam. democracia vira um conceito vazio que pouco conserva do significado original e a gente para de acreditar nela.
talvez por isso a gente viva caindo nessa distorção: esperar que empresas privadas nos respeitem como se fossem entidades públicas; e acreditar que uma boa gestão pública se define apenas pela eficiência, como em uma empresa privada.
assim, nos últimos 30 anos, venceu o projeto político de destruir a capacidade de sonhar. aniquilaram a imaginação e as visões alternativas, nos fazendo acreditar que o capitalismo é a única alternativa (a expressão ‘capitalist realism’ significa concebê-lo como único sistema possível). perdemos o sentimento da coletividade, as utopias e as revoluções. as diferenças que antes criavam debates estimulam ódio. todo mundo tá exausto.
pensar num novo mundo nunca esteve tão atrás na fila das prioridades. bingo.
além do problema para sonhar o futuro que sidarta ribeiro sempre comenta maravilhosamente, incluo nesse o projeto de falta de sonhos o que chamo de infantilização digital.
ela se reflete de forma super evidente na estética de todas as coisas. desde a linguagem de emojis, o design dos ícones dos aplicativos (passarinho, elefantinho, nuvenzinha, tomatinho), até a forma de nos retratar como avatares e, com destaque, a gamificação de todos os nossos comportamentos, atividades e relações interpessoais.
a gente vive dentro desse candy crush esperando o próximo burn out.
esse artigo (em inglês) é um resumo de como a infantilização em massa tem resultado em muitos adultos com medo de se comprometer, que não aceitam responsabilidades, buscam sempre espaços seguros, nutrem um interesse rápido, superficial e repetitivo (sob medida para o consumo) e tem um olhar sem nuances, meio cru (tô sendo gentil aqui kkk). o sonho desse adulto é fugir pro espaço com uma mochila cheia de gibi num foguete do elon musk porque aqui não dá mais.
em uma sociedade que cultiva o like, a bolha e uma suposta estabilidade, com as redes sociais absorvendo os ódios para lucrar com eles, como se lançar a um sonho e fazer uma tentativa de futuro?
se você buscar ‘infantilization culture’ no google, vai aparecer um monte de texto. em português tentei, mas não encontrei tanta coisa - quem sabe buscando por ‘adulto que cata salsinha no programa que marravilha’.
é esse adulto que cata salsinha que vai projetar o futuro? socorro, precisamos colocar um coqueiro no comando o quanto antes.
mas a moda das meninas fluidas de longboard está aprovada sim, acho lindas e livres.
para quê sonhar, afinal, se nada vai mudar? como lutar contra tudo isso?
(nosso café da manhã está extremamente relevante hoje, peço desculpas hahaha)
o importante é começar de algum jeito, mesmo que seja de uma forma pequena, abstrata e individual, já que a coletividade ainda tá meio blé. hackear e desorganizar o sistema sempre que possível pode ser um caminho humilde e possível.
é aí que entra a nossa maravilhosa margareth atwood. logo ela, que criou uma das mais aterrorizantes e concretas distopias do momento, o conto da aia (aliás, menina, você viu o fim da quarta temporada??? babadooo).
“é no futuro que posso controlar todo o relato”, ela diz. e segue: “Os romancistas não são pensadores (..) embora possam encenar o mundo, como um diretor de cinema. (…) É preciso ter cuidado, sempre que falamos do futuro, porque sempre podem acabar acreditando na história’”.
é um pouco essa chave. eles não querem que a gente pense no futuro, fora dos modelos deles, porque quem sabe o controle e a história possam mudar de mãos.
não vamos dar esse gostinho de tirarem a esperança da gente. sonhar é um ato revolucionário.
“a possibilidade não é um luxo. ela é tão crucial quanto o pão”, disse judith butler
nessa linha da possibilidade, também gosto de pensar que o mundo não se resume às decisões que nós ou os outros tomamos. há sempre aqueles ‘pequenos presentes cósmicos’ que são as coincidências, sobre as quais louise bragado fala na sua news estômago:
“as coincidências são justamente nossa abertura à desorganização, uma pequena graça do mistério, uma etapa sutil da vida que tem ficado soterrada. é como se tudo aquilo que não conhecêssemos dissesse: existe uma vida por baixo da vida, uma vida que realiza os encontros de forma mais interessante, despretensiosa, de uma forma até charmosa que diz: ‘vocês não sabem nem da metade’”.
enfim, pequenas aberturas para respirar e sonhar.
interessante essa matéria sobre o exército francês, que contratou escritores de ficção científica para imaginar as guerras do futuro.
fernanda montenegro lendo um trecho de clarice lispector. porque sim.
🔸 vi (filmes em que as coisas fogem ao controle)
a vida dos outros (online no site do sesc). filme envolvente que se passa na alemanha oriental, em que um espião passa a vigiar um escritor de teatro e a vida dele muda bastante depois dessa experiência. lindo final. o escritor é a cara do john cusack, impressionante.
o capitão (amazon prime). um soldado alemão tava passando e encontra um uniforme de alta patente nazista e se disfarça. só que ele assume toda a monstruosidade da farda e a coisa foge demais do controle. gostei, mas extremamente violento e com um final TÁ PASSADA?
a onda. um professor na alemanha (sempre alemanha, né) contemporânea resolve fazer na sala de aula uma experiência de um regime totalitário. só que os alunos levam a sério demais. é um pouquinho de brasil iaiá
druk, mais uma rodada. quatro amigos resolvem testar (sempre começa assim) a teoria de que um certo nível de álcool no sangue traz felicidade. claro que não tem limite e a coisa vai pra um buraco que meu deus. achei muito bom, especialmente por não carregar em juízos de valor
reflexões (dos mesmos criadores de donos de chevrolet ônix que protestam contra a taxação de grandes fortunas)
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e falando sério: sp está congelante (há 5 anos não sentia esse clima), na rua muitas pessoas morreram não de frio, mas de negligência. vamos aproveitar o começo de mês e, se puder, colabore com algum projeto como o sp invisível.
beijos e não deixem de sonhar 🌻
Texto excelente, muita coisa pra pensar. Moro no mato, isolada e em uma bolha, não consigo ser otimista ou sonhar com o futuro - talvez minha idade, 63, tenha me levado a esse desânimo. Esses últimos anos, culminando com a pandemia e coisas pessoais, forem difíceis. E sou sortuda e privilegiada, moro bonito, com Wi-Fi, floresta, ar condicionado e cachorros e gatos. E meu tempo é meu. Mas pensar e mudar de ideia são a minha praia, aprender e mudar, pelo menos tentar mudar; até hoje não desisto disso. Obrigada pelo texto, põe um casaco, toma um chá.
Luciana, bom dia! Fiquei tentando achar um e-mail para enviar, mas, não encontrei. Ainda estou me ambientando com o Substack. Enfim, gostaria de elogiar muito a sua news. Uma leitura densa, profunda, mas ao mesmo tempo leve e direta. <3 Fiquei feliz por ter assinado (nem sei como a encontrei. rs). Uma ótima sexta!