.livros
#09. as meninas de lygia. virar líquido. o homem do pêssego. livro ou kindle? minhas obsessões literárias pela primeira vez em fases, como em picasso. fetiche com ceo.
escrevo essa newsletter sob os efeitos de as meninas, de lygia fagundes telles, que terminei ontem de manhã. começo e termino a grande maioria dos livros cedinho, já que meu horário de ler costuma ser entre 6h e pouco e 8h e pouco, com algumas variações, quase todo dia.
às vezes, numa insônia, tô lá eu 3h30 no horário do demonho, lendo.
não sei se falo primeiro sobre o livro ou o horário de leitura. se aqui fosse um stories desesperado por engajamento eu te pediria, dançando e apontando para palavras, para escolher esse ou aquele. mas como aqui é um espaço chic e slow, vou abrir mão dessa humilhação, já me abro demais pra vocês.
falemos primeiro então sobre horários. depois de alguns anos distante de livros, retomei esse hábito lindo e maravilhoso em 2018. hábito às vezes superestimado e transformado em algo transcendental, mas ainda assim maravilhoso. digo isso porque, como tudo hoje em dia, o pessoal meio que perde o controle e começa a colocar uma aura em tudo. tô exausta de aura em tudo. tudo é uma terapia, tudo é transformador, tudo é evolução, tudo é exageradamente significativo, ‘ah, não vivo sem’. vive sim, minha filha. vive sim.
enfim, depois de alguns testes descobri que sou como a maioria dos seres e leio antes de dormir. como geralmente estou exaustah e moídah, se não for um livro com altos níveis de babado, assassinatos e polêmica, não tem jeito: durmo. daí, além de ler de noite, comecei a experimentar acordar com uma leiturinha. nossa, foi exageradamente significativo e mudou minha vida, nós líderes que andamos de ônibus acordamos às 5h ahahaha, mas sim, a cabeça em paz assimila melhor. já levanto feliz, mais sabida e com 1h a menos de instagram.
(não me considero evoluída por ficar 1h a menos no instagram, veja bem, mas como já trabalho com isso prefiro acessar só em horário comercial. ai que pragmática, ela. sou alguém que aprendeu na dor e no trauma a separar lazer e trabalho *olha firme para o horizonte*)
e sobre as meninas, deusa do céu, que livro difícil de ler e maravilhoso de terminar. sim, foi complexo enfrentar as primeiras páginas sem conseguir distinguir quem falava: lorena, lia e ana clara ou o narrador. era uma polifonia danada, uma confusão, quem é que tá drogada, quem é a mimada, quem é a militante? aí você entra no flow (risos) e aos poucos vai alcançando e apreciando as maravilhosidades que lygia deixa no percurso com fluxos de pensamento, ironias, variadas ousadias, detalhes que amo.
ela me conquistando aqui, porque sempre falo que virei líquido e escorri diante de algumas situações:
“Levanto a cabeça e entro na estratosfera podre de azul grito azul e deslizo azul até o chão rastro veludo-e-ventre a gente devia andar só assim liquefeita e azul colada ao chão escorrendo os braços de rio sem nenhum perigo de cair nem nada”.
fora que ela inclui uma cena de tortura que passa pela censura (enfim, os censores não pareciam sagazes, se fossem inteligentes não seriam censores) em pleno ano de 1973, quando é publicado. que foda essa mulher. ela conta essa história e tantas outras delícias cremosas nesse excelente podcast.
nesse mesmo podcast, aliás, tem a narração imperdível da adriana esteves deste trecho que me abduziu em as meninas. ler é bom, mas a narração da adriana é t u d o.
Assisti de uma esquina enquanto tomava um copo de leite: um homem completamente banal com um pêssego na mão. Fiquei olhando o pêssego maduro que ele rodava e apalpava entre os dedos, fechando um pouco os olhos como se quisesses decorar-lhe o contorno. Tinha traços duros e a barba por fazer acentuava seus vinco como riscos de carvão mas toda a dureza se diluía quando cheirava o pêssego. Fiquei fascinada. Alisou a penugem da casca com os lábios e com os lábios ainda foi percorrendo toda sua superfície como fizera com as pontas dos dedos. As narinas dilatadas, os olhos estrábicos. Eu queria que tudo acabasse de uma vez, mas ele parecia não ter nenhuma pressa: com raiva quase, esfregou o pêssego no queixo enquanto com a ponta da língua, rodando-o nos dedos, procurou o bico. Achou? Eu estava encarapitada no balcão do café mas via como um telescópio: achou o bico rosado e começou a acariciá-lo com a ponta da língua num movimento circular, intenso. Pude ver que a ponta da língua era do mesmo tom rosado do bico de pêssego, pude ver que passou a lambe-lo com uma expressão que já era sofrimento. Quando abriu o bocão e deu o bote, que fez espirrar longe o sumo, quase engasguei no meu leite. Ainda me contraio inteira quando lembro, oh Lorena Vez Leme, não tem vergonha?
same energy deste twitt, hein meu povo 👄
antes que perguntem: livro físico ou kindle?
respondo: os dois, pois a gente não precisa escolher nada, a gente pode ter tudo, é só querer. parem de brigar.
mas claro, o ambience de livraria é uma delícia, isso a amazon não faz, isso o zuckerberg não estraga. ao mesmo tempo, livro não acende a luz, então é isso. ambos.
e lai vou eu inaugurar mais uma fase de obsessões literárias com lygia fagundes telles então.
algumas autoras e (cada vez menos) autores me despertam uma coisa doentia. fico assumindo o jeito da pessoa, o jeito que fala e escreve, fico perguntando ‘você já leu? não? então você precisa’ importunando as pessoas, só falto me vestir igual e fumar que nem o autor. não é saudável. 🤸♀️
vou enumerar a seguir as obsessões literárias de que me lembro agora.
Fase Lygia e Clarice
depois de a paixão segundo g.h., de clarice lispector, passei a devorar tudo sobre ela, totalmente drogada. e aí com as meninas, de lygia, tô indo nesse mesmo caminho sem volta dos devaneios de consciências e as pepitas de ouro que essas lindas deixam no caminho.
Fase Oriente
não tenho um nome melhor no momento, mas depois que li a mulher que chora, de su tong, uma delicadeza sofriiida e sem fim, comecei a ir atrás de escritores japoneses, sul-coreanos e chineses. no começo desse ano fiquei pirada em pachinko, de min jee lee, e acho que nunca li 600 páginas em três dias - como foi o caso. li sono, do murakami, todinho, exatamente em uma noite de insônia me identificando com vários momentos. já tinha amado a vegetariana, de han kang e, minha nossa senhora, me buleversou, como diria lygia em as meninas. assim como o mais recente de han, atos humanos, que é muito bom (tem uma passagem no segundo capítulo em que ela descreve os espíritos das pessoas que é de uma ternura infinita, tipo luzinhas, reli chorando). mas pra mim a vegetariana supera tudo. recentemente yoko ogawa me encantou com a polícia da memória e quero mais dela. enfim, bora ler o pessoal do lado de lá.
Fase Latina Gótica
em paralelo, estou vivendo uma fase gótica bruxona latina distópica sobrenatural estranha lasciva com escritoras mulheres com uma vibe sul. que misturam horror, fantasia, feminismo, sexo, violência, crítica social e política. comecei meu percurso com um livro não traduzido do espanhol ainda, chamado cadavre exquis, de agustina bazterrica, sobre um cara que trabalhava em um açougue de carne humana porque os animais ou morreram ou tavam contaminados, amei (sou assim). então fui atrás de quem mais escrevia bizarramente (why not) como ela e emergiu toda uma cena, que também inclui as coisas que perdemos no fogo, soberbo do começo ao fim, de mariana enriquez. na linha dos contos incômodos, também curti não aceite caramelos de estranhos, de andrea jeftanovic.
talvez o recorde de incômodos e momentos tipo -nããããão acredito que ela escreveu isso- tenha sido com rinha de galos, de maría fernanda ampuero. baita livro, você lê num susto em poucas horas, sempre perplexa com incestos, assassinatos, loucuras e violências mil. las voladoras, de mónica ojeda, também não traduzido, tem cabeça rolando, mulher voando, menstruação, essa energy. gostei ainda de alguns contos do a fúria, de silvina ocampo, precursora das estranhas em 1959. recentemente li outro bem esquisito, gótico mexicano, de silvia moreno-garcia (resenha aqui), que talvez vire série ou filme. não é ohh mas gosto das descrições da casa como um organismo meio vivo, repleta de fungos, achei atual por vivermos um efeito mushroom na moda. e, cá entre nós, acho que nossa lygia poderia perfeitamente integrar esse rol das bruxas do realismo fantástico. joguei.
Fase da maldade
dei a pista no tópico anterior do quanto amo ler sobre ‘quem matou’, torturas e assassinatos. não vou saber te explicar de onde vem isso, mas sou praticamente vegetariana se isso puder ajudar na análise.
tenho uma estranha predileção por tudo o que é livro que termina com ‘auschwitz’, tipo ‘a bailarina de’, ‘a cozinheira de’, ‘a mulher que provava a comida do hitler e tinha medo de’, ‘o bebê de’, ‘o tatuador de’ etc. começou com o diário de anne frank, que li com uns 13 anos e mudou minha vida, me levou pra um mundo que eu nem sabia que existia. desde então veio meu fascínio com segunda guerra. acho que é por isso que preciso desses livros, é tudo tão chocante que preciso ler e reler para tentar entender. um recente e agradável que li, sobre a história de uma francesa durante a ocupação alemã, é paris é para sempre, de ellen feldman.
mais recentemente, guardadas as proporções, claro, tive uma onda bom dia verônica. fiquei meio obcecada pelo autor raphael montes, então passei a ler tudo dele. mortes, stalkers, policiais, perversões variadas. que menino doido, tão novinho, você nem acredita o que sai dali. achei dias perfeitos e uma mulher no escuro melhores que o verônica. o da mulher no escuro é o livro com mais reviravolta por metro quadrado que já devo ter lido. 👀
Fase babados napolitanos
não poderia deixar de mencionar o estrago que a dupla elena ferrante & domenico starnone fizeram na minha pessoa. devo ter lido 2400 páginas toda me tremendo em poucas semanas, sempre a noite, trêmula, sugada por esses dois. gosto de absolutamente todos os livros deles - alguns mais, como dias de abandono (dela) e laços (dele). eles têm uma capacidade incrível de nos carregar pra dentro daquele mundo, daquelas ruas, você entra na mente dos personagens, odeia todos, passa por humilhações com eles, mas continua obediente, babatti i confuzioni, então depois você passa a entender cada um, ainda que não concorde com nada. e segue engajadíssimo. sempre tem machos tóxicos pra gente observar, julgar e se divertir.
não posso deixar de elogiar o primor que é a adaptação de a amiga genial pela hbo, porque eles conseguiram exatamente recriar tudo como imaginei. nunca o algoritmo foi tão longe.
Fase Tudo é Rio
porque esse livro de carla madeira é sensacional e não consigo encaixar em nada aqui. sei que não desgrudei dele até terminar.
nas fotos acima, três livrarias-sonho que ficam aqui perto de casa :)
ai gente, não quis fazer mil resenhas, não tenho a menor pretensão de escrever ‘este livro é uma meditação sobre’ ou ‘trata-se de um romance de formação no qual ela’ nem chamo céu de firmamento. longe disso. mas vai que alguém curte um desses roteirinhos obcecados de leitura ou me sugere algo bom. tamos aí.
ah, antes de todas essas fases, na adolescência eu era tarada TARADA pela ana cristina cesar. tarada. achava tudo dela um charme. até hoje quero escrever como ela - como as cartas dela, especialmente. mais uma diva do fluxo e da falta de pontuação que admiro horrores. houve um tempo, quando eu era blogueira em priscas eras, que eu colocava & no lugar de ‘e’ que nem ela, tadinha de mim, mas já parei. & tá tudo bem.
também amamos a intrigante tendência de romances com fetiche em ceo que invadiu as livrarias. a leitura das sinopses é deleite garantido. se você quer se tornar ceo, esquece, na amazon não tem bibliografia pra você. se quiser ser um gestor sensual e hot, sim, tem.
vocês marcam muita coisa nos livros? eu super, tem livro que praticamente grifei todas as frases sempre trêmula, como foi o caso de um teto todo seu da virginia woolf, e a cidade solitária de olivia laing. tem livro que simplesmente você fala ui, bateu.
hoje sou mais comedida e colo aqueles marcadores coloridos transparentes que vendem na daiso. até tinha comprado um caderninho pra anotar frases e insights (risos) mas impossível pra mim. mas acho lindo quem se dedica, quem ficha, quem anota na margem, quem tem letra bonita como isabella:
🔸 links
uma news ótima da gaía passarelli sobre ler mais
assinei por um valor módico a quatro cinco um, revistão com matérias ótimas sobre livros. gostoso receber papel em casa, abrir, folhear. estou romantizando papel, me deixa. a maioria dos textos está no site, como esta resenha perfeita de socorro accioli sobre a polícia da memória. aliás, recomendadíssimo a cabeça de santo, romance de socorro também com ares de realismo fantástico que narra a história de um homem que passa a morar dentro de uma cabeça oca de santo que de fato existe no interior do ceará
podcast lindo, divertido e comovente com nélida piñon falando deliciosamente sobre sua amizade com clarice lispector
escuto demais o podcast rabiscos, uma alegria na hora de lavar uma louça, fazer uma faxina. destaque para este episódio sobre distopias
quer um filme sobre assassinato real que é revelação atrás de revelação e prova que nem tudo precisa ser uma série? a cara de hoje a noite: homicídio na costa do sol (netflix), vai por mim, é muuuito melhor que aquela pataquada machista na série da elize matsunaga (netflix). ali foi um desfile de gente cafona com hobbies cafonas como caça e charuto, aff. não me conformo que o yoki era rico e morava num apê deprimente como aquele. diz muito sobre. devia comer tudo da yoki, oleoso
20 filmes argentinos vigorosos na netflix e amazon prime - bezos tem dinheiro pra ir no espaço mas não paga uma pessoa pra ajeitar esse app
dica do kleber mendonça filho, de filme que traz a figura do sudestino em ação. vou super ver. o contexto da dica é o bafafá depois desse vídeo do porta dos fundos. pessoal em sp não aguenta 4 minutos de preconceito reverso hahaha lutem
debora falabella lê poema de ana martins marques. não sou fããã de poesia-poema, mas abro uma grande exceção para ana. meu preferido dela é este, pagina 70 do livro das semelhanças:
Pense em quantos anos foram necessários para [chegarmos a este ano
quantas cidades para chegarmos a esta cidade
e quantas mães, todas mortas, até tua mãe
quantas línguas até que a língua fosse esta
e quantos verões até precisamente este verão
este em que nos encontramos neste sítio
exato
à beira de um mar rigorosamente igual
a única coisa que não muda porque muda sempre
quantas tardes e praias vazias foram necessárias
[para chegarmos ao vazio
desta praia nesta tarde
quantas palavras até esta palavra, esta
FLOWSERS, obrigada de ❤️ pelos comentários, emails e indicações a cada news! é uma alegria quando chega um singelo like, fico tipo ‘não acredito que alguém me leu’. sempre trêmula. vou responder todos, absolutamente todos, ando passando por um período sofrido com excesso de trabalho (que o universo não me entenda mal, não estou reclamando, mas) e as coisas vão tranquilizar já já.
🔸 para quem quiser interagir, basta responder a news que vai direto pro meu email. ou então ir no post e entrar nos comentários:
não vou falar mais nada, jogarei essa música pra você bater palminha e começar essa sexta suave
bezos e até semana que vem
Lendo cada Newsletter em dose homeopática pra prolongar mais o prazer. Que achado meu deusss.. to falando do flowsmagazine pra todo mundo que converso.
Luciana ,
Sua newsletter certamente entrou na minha lista de : comfort alguma coisa ..
comfort movies : Frances Ha
Comfort Music : Make you Mine - The Clientele
Comfort Internet Conteúdo : FlowsMagazine
Lindo demais … além das gargalhadas que eu dou , todas as indicações são um abraço ..
vi a mesa do Caetano na Flip
O podcast da Nélida , aproveitei pra ver no livro de cartas da Clarice se tinha uma carta pra ela , e de fato tinha .
Tinha comprado o livro “ cidade solitária “ mas tinha deixado de lado sem ler uma página se quer … mas foi sua news relembrar que eu tinha esse livro , pra eu estar devorando …
Enfim ..
Cheguei aqui por meio da TTMT da Gaía .. achei que ficaria “ órfão “ da pausa que ela deu .. mas sua news é uma GRATÍSSIMA companhia …