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#84. mas também são paulo. me rogaram uma praga no centro da cidade. afrontas do dia a dia. um micro-conto, um podcast e duas séries ótimas.
fim de semana passado tentei ir numa peça de teatro que acontecia na rua, no miolo do centro de são paulo, terminando no largo do paissandu. foi colocar o pé fora do carro, pra alcançar o bar onde começaria o espetáculo, que dois caras sorrateiros numa escada já nos rogaram uma praga - sério - dizendo que rogo a satanás (sério) rogo a satanás que vocês três sejam assaltados. a gente simplesmente desceu a tal escada apavorados e pegou o primeiro ovni para bem longe dali. não vimos a peça, não fomos no bar, não conseguimos fazer o básico por causa do clima horrível e do risco que paira por lá.
queria resistir, lutar, dizer que a decadência do centro é um projeto de especulação das construtoras e do capitalismo, fazer um selfie cheio de bravura na praça da sé? queria. mas, tipo, não queria perder meu celular e minha vida nesse pioneirismo.
esse é um pequeno resumo de como anda meu sentimento em relação a são paulo. estou claramente passando pela crise de 7 anos de relacionamento morando na cidade, no centro expandido (+15 pts). uma relação claramente abusiva, que intercala ápices de paixão e revolta. meu bode só aumenta pelos lugares-comuns de insegurança-lixo-cracolândia-desigualdade que definem são paulo nos noticiários ultimamente, mas não só.
o que destrói são paulo é a falta de perspectiva e, principalmente, falta de intenção e ambição. sobram irrelevância e improviso superfaturado em tudo.
a falta de ambição em são paulo é uma das coisas mais crônicas e que mais lamento hoje. logo aqui, uma cidade tão ligada a essa energia do trabalho, com a fumaça do burnout espessando nossa faixa de poluição (acordei lírica).
nesses últimos meses consegui verbalizar e sintetizar esse sentimento que vem se ensaiando dentro de mim há tempos. acho que muito vem dos vídeos do raul juste lores, quase sempre estão em fina sintonia com minha percepção da crise urbana e estética de são paulo. mas também das conversas e da observação que gosto muito de fazer pelas ruas (ai que cronista). vivo uma crescente falta de entusiasmo por essa cidade governada por uma elite desinteressada, cafona e preconceituosa, que virou um canteiro de obras de destruição.
um paradoxo triste, a construção da destruição da cidade. lamento as vilinhas-casinhas-predinhos demolidos, mas o sofrimento adicional vem com o que colocam no lugar. precisava ser tudo tão horroroso? é sempre um template genérico de you kitnets empilhadas, em uma arquitetura urbana sem visão, charme, personalidade, cuidado, respeito ou beleza. vinte andares de puro vazio em cada esquina (acordei melancólica). alguns prédios já são feitos para terem só apartamentos de aluguel, pra ninguém se fixar por lá.
a sensação é que todo mundo meio que desistiu de são paulo. quais as consequências de uma cidade que não faz as pessoas felizes?
o contraste ficou claro pra mim quando visitei o rio de janeiro no último feriado. vou fazer o disclaimer de que sei demais dos problemas terríveis do rio, nas mais variadas esferas políticas, históricas e sociais, além do meu recorte ser super restrito a um pedacinho da zona sul, mas algumas tentativas mostram um mínimo de ambição ou de vontade de fazer as coisas. assumo que voltei cadelinha carioca, amando o supermercado zona sul e querendo me alimentar apenas de bolinhos de bacalhau e de feijoada, deslumbradíssima.
me vi encantada com a estrutura turística (que é o que a cidade promete e relativamente entrega bem), com o comércio local que resiste (pequenas farmácias, zero unidades de oxxo e viva novamente o supermercado zona sul com suas lindas ecobags coleciono ecobags de todos os supermercados do mundo que conheço), com ruas até limpas no metaverso entre botafogo e leblon, com o croquete a 6 reais no bracarense, vendo do alto do pão de açúcar os aviões subirem e descerem no santos dumont, espantada com o tamanho da ponte até niterói, saindo de cada túnel ofuscada pelo verde das matas, encontrando o cristo redentor em ângulos inesperados, com roupas leves e uma alegria de viver inevitável, de quem tem a natureza tão grande e tão perto.
tudo isso no meu nano-recorte de 3 dias na cidade, claaaro. mas valeu a pena ver o céu e respirar fora desse bololô que virou são paulo.
o museu do amanhã, com todas as ressalvas possíveis para um projeto que despreza o passado daquele lugar de tanta morte, traz um emblema de arquitetura relevante. chamou-se um arquiteto premiado pra fazer um prédio icônico, que marca a paisagem e traz algo inovador pra uma região antes desprovida de atrativos maiores. ou mesmo o mis que estão construindo em copacabana, um prédio todo assimétrico, arrojado, feio e bonito ao mesmo tempo, mas que traz algum valor, uma discussão estética que seja. qualquer biscoito-ou-bolacha a gente tá aceitando nesse debate urbano incipiente. e vale lembrar que não são todos os lugares dando certo: espaços como o gabinete português de leitura estava até com o teto de vidro prestes a cair, da última vez que passei por ali. o centro também parece receber pouca atenção no geral.
não nego a desigualdade, mas há que se observar ao menos a intenção e a ambição de manter o sobrenome “maravilhosa” na cidade, nem que seja pras visitas. o bondinho do pão de açúcar, por exemplo, achei que funciona perfeitamente e garante um dia bem legal de passeio, se a intenção for ser bem turistona. tão fazendo uma tirolesa para quem quiser descer com emoção.
mas em são paulo: qual o último prédio público/cultural super bacana realizado? thanks lina bo bardi por tudo, mas lá se vai mais de meio século. quando anunciaram o novo instituto moreira salles anos atrás na avenida paulista, pensei “vem aí”, mas o que veio aí foi mais um prédio. se você não avisa que é um museu, poderia ser tranquilamente mais uma pilha de escritórios com gente de coletinho dando o melhor. tem um detalhe ou outro interessante, mas é mais um edifício entre inúmeros outros na paulista. assim como são prédios o sesc do centro e o da paulista, além do itaú cultural. igualmente prédio. é o máximo que a gente consegue criar?
o máximo que foi feito pode ter sido a japan house, com uma fachada interessante, mas é uma escala ainda muito tímida para o potencial e a riqueza da cidade. sempre que surge algo novo, é meio sem entusiasmo, e esse sentimento se derrama pela população, que já espera pouco da cidade.
a coisa vai numa preocupante vibe orgânica e aleatória, sem intenção além de destruir e de contemplar a elite deseducada, vazia de sentido mas adepta de um excesso de conceitos, rooftops e comodidades em tudo o que consome, sem aderência com a realidade (obrigada flávio dino, vivemos no mesmo continente mental). temos a febre das praias paulistanas (risos descontrolados) ao redor da marginal pinheiros com volêi e tênis “de praia” e temos também um prédio agora na região do ibirapuera com um comercial em inglês passando na tv, porque uau, a gente não tinha visto cafonice suficiente (acordei girando).
nem sei como não traduziram ibirapuera pro inglês, não soar soooo tupi guarani.
de novo: o que mata é a falta de futuro e de desejo. pinheiros, já comentei, está repleta de canteiros de obra que prometem uma vida no bairro charmoso, sendo que todo o bairro charmoso está sendo demolido e a espiral é essa. a pouca ambição é imensa, de fazer uma cidade minimamente (sempre o mínimo) legal, interessante, que traga o básico de qualidade de vida de forma democrática.
parques privatizados viram shoppings a céu aberto, cidadãos (alguns) viram clientes, o espaço público se degrada a 400km/h e a prerrogativa de revitalizar regiões da cidade é delegada à iniciativa privada, sejam construtoras com narrativas de boas intenções ou projetos pontuais de espaços alternativos que só resultam em gentrificação. a gente sabe o que acontece quando o capitalismo rege. nada que vá interferir na estrutura e na dinâmica de miséria e horror que temos visto nas calçadas (quebradas) da cidade.
até o grito avulso da madrugada, as pessoas falando sozinhas na rua ou o cocô humano distópico nas ruas da bela vista, que eram um lance meio folclórico do bairro, tão ficando mais e mais grotescos (vocês não merecem os detalhes).
a gente não pode se distrair por um minuto.
o tanto de violência introjetada e a atenção pra se desviar de tudo - imenso e exaustivo.
enquanto respiro fumaça e me desvio de dezenas de pessoas maltrapilhas deitadas nas ruas, resisto a ficar olhando para os exemplos de revitalização bem sucedidos em seul-barcelona-londres-pariszzz etc, porque quero manter minha sanidade e sonhar nesse caso só ia me causar frustração.
mas é triste. porque a gente podia, podia mesmo, ter algo vagamente em comum com uma metrópole. o debate político é cada vez mais distante, pautado agora por love ou hate em redes, em intensas ondas de espetacularização que duram 5 minutos em cada tema e depois passam. é tipo o modo pulsar do liquidificador.
nada vai se construir se a gente seguir governando ou decidindo as coisas na base do espasmo e da reação. sempre sem projeto, sem ambição, sem intenção, sem sonho nem futuro - aliás, perder tudo isso é o projeto. impressionante como a Internet nos condenou ao presente infinito. mas o que fazer?
e o que esperar de uma cidade que não renova seu branding há 200 anos e se perdeu no personagem, vista até hoje como locomotiva fumacenta do país ou selva de pedra, mas sem competência pra ter uma calçada inteira ou um riacho limpo? a pegada de carbono, gente, sem comentários.
sem contar as estações de metrô, sempre feias e com três andares, acho que é toc superfaturado pois o rolê é subterrâneo. nunca vou entender, mas tô assim - achando tudo uó.
espero voltar a amar são paulo um dia.(acordei revoltada)
(mas esse vai ser o mais engraçado vídeo sobre arquitetura hoje)
noemi jaffe cirúrgica em seus micro-contos. amo.
não deixem de escutar esse fabuloso podcast sobre são paulo para prolongar a indignação - e que fala sobre absurdos em outros lugares, como no rio de janeiro. lá, a estação botafogo-coca-cola teve o nome vendido por 200 mil reais mensais. gente, 200 mil por mês deve ser o salário do gerente júnior da empresa. é uma afrontaaaa, vamos todes pro vão do masp agor
duas séries
a última coisa que ele me falou (apple tv) || mais uma série com muito mar produzida por Reese Witherspoon depois da amada big little lies (mas tb gosto de the morning show, que é dela também). estou interessada nessa fase final, com o último episódio indo ao ar no próximo dia 19. a história é Hannah (Jennifer Garner) num relacionamento com um boy que some e deixa de brinde a filha adolescente Bailey (Angourie Rice). as duas tentam descobrir inicialmente o motivo do desaparecimento do bonito, mas depois a trama amplia os mistérios.
a small light (disney+) || ótima surpresa essa série (vi pro enquanto os dois primeiros episódios liberados, os próximos estreiam dia 15), que traz outro ponto de vista de uma das histórias que mais marcaram minha vida. sou apaixonada pelo diário de Anne Frank, foi uma das leituras que transformou minha adolescência - e fiquei muito feliz quando pude ir já adulta ao museu, na casa onde ela ficou escondida durante a segunda guerra com família e amigos. enfim, a série produzida pela national geographic foca na vida de Miep Gies, secretária que começou a trabalhar com o pai de Anne. por quase dois anos, ela e seu marido, Jan, protegeram a família Frank. a atriz Bel Powley, que faz Miep, é bem carismática. toda uma luz.
falando em luz, sextou celebrando rita lee. mulher, artista, absurda e sensacional, que vai fazer muita falta e que transformou tanto. essa entrevista é lindíssima. e o que dizer de rita e hebe juntas?
imortal. estelar. cósmica. essencial.
ela não foi, ela é e será.
(e aproveito para registrar: saudades também palmirinha querida)
Eu li essa edição toda pensando naquele vídeo "e essa vista? São Paulo não tem isso!", enquanto a porrada come no fundo kkk É uma boa definição do Rio. Moro em Petrópolis, toda vez que desço a serra ainda me surpreendo. As contradições da cidade são igualmente superlativas, mas a beleza é inegável, o charme é palpável. Não sei se compensa ter uma orla daquelas quando você a observa de um coletivo lotado às 8h da manhã, mas pra quem tá de passagem, é de encher os olhos. Curiosamente, pra quem visita mais o Rio, estar em São Paulo é uma delícia, tirando as pessoas grossas nas escadas rolante e os riscos do centro e tudo mais. Pra uma menina do interior como eu, é fácil se deslumbrar com tanto prédio, e com tantas possibilidades dentro dos prédios. Eu finjo que a maioria deles não é povoada de agências de publicidade com ambientes de trabalho tóxicos e aproveito meus 2 dias na cidade enquanto penso, "uau, um restaurante do Congo" rs Viver é um constante estado de negação, né não?
Eu amei a coincidência que foi essa edição levar o mesmo nome da minha última publicação. Três dias é mesmo o suficiente pra gente pensar em ficar de vez na cidade carioca.
Achei muito interessante e certeiro tudo o que você abordou sobre as duas cidades (também fiz o disclaimer sobre o Rio no meu texto, afinal, tem que ter, né, risos). Sou paulista e você soube descrever perfeitamente o meu sentimento e perspectiva como moradora. Moro longe do centro, é verdade, mas me apavora a ideia de um dia precisar estar por lá. O que fizeram com a cidade que amávamos? Que amamos ainda, na verdade, e que ainda estão fazendo... qual o nome desse projeto? Você usou a palavra "entusiasmo" e achei que ela cabe direitinho: me falta entusiasmo de viver aqui. A crescente da desigualdade enche meu peito de desespero toda vez. Nem vou falar sobre as construções de prédios isso-e-aquilo porque você falou muito bem. Eu também espero voltar a amar São Paulo... amar mais, porque não dá pra odiar, dá pra amar e odiar, mas só odiar acho que ainda não consigo, mas que ela me entristece, ah, entristece sim... que horroroso esse relacionamento, né? :~
Vi em um comentário abaixo sobre o meme ''e essa vista? São Paulo não tem isso" e imediatamente fico put*, porque lembro de uns engraçadinhos tweeteiros que leva isso muito a sério. Odeio a rixa SP x RJ. Comparar as duas cidades é de uma burrice... pronto, falei. Hahahahaha. Sou paulista de nascença, mas o coração tá o tempo inteiro na cidade maravilhosa. Amo as duas.
Espero, profundamente, que possamos a voltar a amar São Paulo, mas não me sinto muito otimista por agora, infelizmente... só espero que possamos parar de ver sua destruição assim, aos poucos e sempre.
Texto incrível, Lu! :) Obrigada! Um beijo.