.recusas
#18. essa festa pobre que os homens armaram. torrent solidário. top 5 recusas conscientes. as vantagens de ser bobo por clarice lispector. trio de links. bethânia para sextar. gratidão.
antes de tudo, como foi boa a energia gerada na ultima news! queria sempre agradecer a generosidade da gaía pelo espaço e pelas conversas. é cada momento maravilhoso e inesperado que surge daqui. então muito obrigada a quem chegou na flowsmag!
comentei esses dias com alguém que, antes de criar esse espaço-tempo chamado newsletter, eu achava que as conversas legais, as aproximações pela escrita e as gentilezas virtuais tinham acabado em tempos de internet tóxica.
claro, sinto imensa gratiluz pelas almas elevadas que legendam nossos torrents, num mundo em basta marcar três semáforos pra provar que é humano. o critério baixíssimo. mas pensei: mas por quê precisa ser assim, por quê vivemos num sistema tão bruto? a gente pode, simplesmente, quando dá, se recusar a participar dessa festa pobre que os homens armaram pra me convencer #brasil #sambando
se recusar a ser de um jeito que não somos. se recusar a tornar o mundo pior do que já é. tem horas que a gente precisa falar: ok, não é pra mim, e rejeitar coisas as quais não somos obrigados - e os defaults da vida ficam nos impondo pra ver se cola. além de marcar semáforos ou bicicletas, a gente vive numa gincana permanente para (se) testar o que é humano nesse mundo hostil.
quase sempre esquecemos que existe a possibilidade da recusa. às vezes, pelas condições difíceis que se tem no momento ou pela dinâmica insana da vida, a gente simplesmente vai. porque é mais fácil, porque a gente tá cansado e não quer mais se esforçar ou questionar. até pra recusar a gente precisa ter energia, afinal. nem sempre dá.
estamos tipo no modo não aguento mais não aguentar mais, título do novo livro da anne helen petersen (que aliás tem uma ótima news em inglês que acompanho quando posso).
feito todo esse PREÂMBULO (momento michel temer ghostwriter), sinto que pelo menos algumas recusas podem valer nosso esforço.
eis o top 5 das minhas pequenas recusas atuais (uma lista que só cresce, porque não sou obrigada):
me recuso a dar o máximo sempre. primeiro porque não precisa, o meu mínimo já é super bom. e também porque gosto da transgressão que é a gente dar o mínimo, nessa sociedade que fica exigindo alta performance profissional, emocional, física e social. me recuso a dar o máximo como se fosse normal, ainda mais conhecendo esse sistema de pessoas permanentemente insatisfeitas. por mais que a gente dê nosso melhor, nunca será o bastante. onde vai parar? ou já parou. posto isso, dou o mínimo e posso às vezes entregar um pouco mais - o suficiente para não virar padrão nem acostumar mal quem recebe. o máximo não precisa ser default, é um plus. e vamos administrando. menos é mais, diz o ditado.
me recuso a usar a expressão me policiar, que é detestável e cafona, porém tão infiltrada no nosso vocabulário. porque polícia é uó, especialmente no Brasil 2021. que nem dar o braço a torcer, que soa como tempo de ditadura. essa linguagem que internaliza e normaliza a presença da violência só nos deixa sequelas.
me recuso a saber tudo, a estar atualizada sempre. acho uma prisão, especialmente hoje em dia. é um pouco esse texto da letrux. fora que deve ser mega chato saber de tudo e nunca ser surpreendido com o que nos mostram. mesmo quando sei, finjo que não sei, só pra continuar a conversa. já fiz isso dezenas de vezes. menti sim.
me recuso a achar que a humanidade acabou. o momento LinkedIn construtivo da semana foi ter esquecido meu celular no uber e a motorista maravilhosa -sandra regina- desafiar todos os prognósticos e me devolver o aparelho. fiquei emocionada e tinha esquecido como a gente se habituou a não esperar nada das pessoas. só o pior.
a gente se acostuma com a miséria da desconfiança e da esperteza mal intencionada, típicas de um mundo bosta. e tudo o que o sistema quer é que a gente pare de se importar e fique emocionalmente mesquinho, porém consumindo conteúdos edificantes.
me recuso a ser grosseira porque o mundo exige a brutalidade. tipo ser tosca com alguém que foi uó comigo. eu faço é ser educada em dobro e devolvo todo o meu brilho exatamente para constranger quem foi ridículo. é minha forma de humilhar pedagogicamente. me recuso a enganar porque também me enganaram, povo ama um ciclo infinito do trauma e vingança, né. eu não. mas depende. tem um asterisco nessa promoção: jamais terei essa consideração com fascistas e afins.
e aí teve outra conversa, na verdade um comentário ótimo que recebi da queridíssima Melissa Lüdeman. ela que teve o trabalho de colar lá um texto maravilhoso que eu ainda não conhecia da clarice.
é tudo o que eu queria ter escrito. então agradeço de coração a melissa e repasso a gentileza pra vocês:
Das Vantagens de Ser Bobo
O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."
Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.
Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.
trio de links
descobri com anos de atraso o podcast não inviabilize e tô viciada nas histórias. escutei algumas ótimas essa semana: tapioca, vampiro e o maravilhoso desfecho de goiabinha
filme o baile das loucas (prime video) dirigido por mélanie laurent (nossa eterna shoshanna incendiária) mostrando o sofrimento de eugénie, moça que fala com espíritos mas evidentemente no século 19 é tratada como histérica e internada num manicômio - que é um lugar cheio de médico sádico e tratamentos terríveis em paris. visão sempre necessária que destaca o buraco para onde o machismo e o patriarcado levam sempre
esse molho tipo bolonhesa da paola carosella, à base de couve flor e cogumelos, é uma pepita de ouro no youtube. não fiz ainda mas confio de olhos fechados
sextou com bethânia serena no colo de chico com uma bibidinha casual
Nossa, muito bom lembrar de se recusar a se policiar!
Nossa, Lu, tantas coisas para comentar. A primeira é que, como você, eu também acho que meu mínimo já é suficiente. Aprendi isso sendo frila, antes não tinha essa dimensão: estava o tempo todo querendo exceder as expectativas. A segunda é que ainda luto para aceitar as vantagens de ser boba. Fico sempre me culpando por ser boba quando alguém me passa a perna. Mas estamos aí, na batalha. Um beijo!