.parar
#88. contemplar nossas próprias coisas. a gente se deslumbra mais com o que não vimos do que com as coisas que já nos deixam felizes. caos personalizado. liberal nas séries, conservadora nas músicas.
não seguro minhas contradições por muito tempo. é sobre isso e tá tudo bem hahaha. depois de ter feito um tratado sobre meu tédio e minha angústia pela lentidão do .presente, vim hoje defender a pausa. é, gente. precisamos parar um pouco. tipo uma grande segunda sem carne, sendo que seria o mês inteiro. e nada a ver com carne, seria tipo um mês sem conteúdo novo em nenhum lugar da internet.
um mês inteiro. imagina o mundo, pessoas e empresas, todo mundo parando por um mês. parar e só ler, consumir, comer e lidar com o que já existe. não produzir nada por um mês, especialmente conteúdo, que é pra gente conseguir parar e olhar o que já existe.
parar, arrumar as coisas, contemplar. a gente simplesmente não contempla nossas próprias coisas, nossos pensamentos, o lugar onde a gente vive. é raro e difícil reler um livro ou rever um filme, diante do imenso volume de coisas novas que surgem. quem tem paciência ou desprendimento para rever coisas, sendo que o novo está sempre aí?
lembrei de quando meus pais compraram o primeiro aparelho de cd em casa, ali em MIADOS da década de 1990. vinha junto um cd do phil collins ahaha, chamado both sides of story, lembro bem dele pois eu re-re-re-reescutei aquele disco umas 320842039 vezes em looping. eu adorava olhar o cd, abrir a caixinha, colocar na bandejinha, escutar o barulho de laser na leitura do cd - era muito auge -, apertar os botões que eram tão mais delicados que os do toca-discos ou do toca-fitas. era uma época de botões gostosos, eu nunca exatamente amei touch screen. decorei todas as músicas, o som era mega cristalino e stereo para meus ouvidos mono. virei fã de phil collins? não mesmo ahahaha.
mas era uma coisa de parar, curtir aquilo, por mais banal que fosse, para eu chegar aqui, quase 30 anos depois, e trazer essa memória tão sensorial da minha vida. a ocasião em si não tem muito elemento afetivo, mas ela ativa uma lembrança de quem eu era naquele tempo, uma criança por volta dos 13 anos.
eu só tinha um cd e um sonho (brinks). tive que aprender a lidar com ele e parava todo dia pra ouvir algo que eu não necessariamente gostava. o quanto isso soa loucura nos dias de hoje. era o que tinha, eu não precisava de um mundo moldado ao meu redor. longe, muito longe, da atual experiência de caos personalizado que vivemos atualmente.
hoje parece que a gente se entusiasma mais com o novo do que com as coisas que já temos e já vivemos. parece que curtimos e nos dedicamos mais àquilo que ainda não existe, em vez de cultivar coisas que a gente já conhece e gosta.
há quanto tempo não releio um livro que amo ou revejo um filme que já sei que vai me fazer feliz?
o fato da gente não apreciar de novo e de novo coisas que já amamos certamente tem impactado na nossa ansiedade, na nossa relação com o mundo e na cultura.
haverá alguma tendência de loopings do passado em breve no tiktok? questões.
depois da história do phil collins, fico pensando que a música é o campo em que ainda me mantenho muito conservadora. liberal nas séries, filmes e costumes; conservadora em músicas e na economia ahahaha.
quase todo dia escuto música enquanto escrevo ou pesquiso no trabalho. só escrevo a newsletter com música (rock) bem alta. não conheço a maioria dos artistas que movem montanhas hoje, só um ou outro. a maioria acho um mix de fogo de palha com marketing e volto sempre aos meus clássicos (rock), tocados por mãos humanas, instrumentos musicais reais e vozes que não exalam retoque (ainda que eu saiba que tudo hoje é super trucado, mas me deixa me larga sou super naïf).
sou mega chata e resistente especificamente com músicas novas, acho que pelo conforto que as minhas músicas (rocks) já me trazem. o prazer de saber as letras e o que vai acontecer naquela virada da música. busco normalmente bandas que repetem estilos de outras bandas de que já gosto. enfim.
sempre em momentos difíceis recorro a músicas, mais do que livros, filmes ou séries, pra alcançar uma sensação genuína de paz e alegria. dia desses eu tava normal e tocou here comes the sun. como eu escutei todas as músicas dos beatles e sei c-a-d-a suspiro, fiquei acompanhando as palminhas ritmadas, o fone no último volume, meus olhos do nada lacrimejando cantando sun, sun, here it comes. foi bem sublime esse dia. mais uma memória que vai me fazer lembrar, daqui a umas décadas, da pessoa que eu era hoje.
também faço isso cada vez mais em viagens. quando volto a um lugar, não tenho o menor pudor de comer num restaurante onde já fui ou passear de novo naquele parque ou entrar mais uma vez naquela mesma livraria. repetir coisas é muito reconfortante. em alguns casos, se eu puder, até me hospedo no mesmo lugar se eu tiver gostado da outra vez. tem umas viagens tão boas que dão vontade de simplesmente refazer, alterando uma coisinha ou outra.
enfim, seria bom dar uma parada, uma relaxada, uma organizada. além de parar, queria também voltar um pouco. confissões: queria parar e reler algumas das minhas newsletters (diz ela, enviando uma nova newsletter hoje) e as news das amigas e amigos, que se empilham na minha caixa de entrada. escutar pela milésima vez aquele britpop exausto enquanto releio algum livro bem delicioso, tipo pachinko ou algum da clarice (faço uma leitura anual, acho que é o único atualmente com esse privilégio, de a paixão segundo g.h.). queria parar, curtir o que já existe e então voltar um pouco. ficar naquele espaço-tempo, um pouco atrás do hoje, só pra retomar o fôlego.
agora pare.
pegue no bumbum.
pegue no compasso.
(hino)
essa conversa sobre temporalidade me lembrou de um texto que li esses dias na contagious, que comentava como o número de relatórios de tendências quase triplicou nos últimos 5 ou 6 anos. o tanto que isso cria de ilusão, de que a nossa sociedade ou nossa cultura estão se movimentando freneticamente rumo a um certo progresso. mas é o contrário em muitos casos, porque muitas (se não for a maioria) das tendências são retornos ou remixes de coisas conhecidas. moderno é ter nostalgia de tempos passados - vamos lidar naturalmente com essa informação.
a percepção de aceleração que a gente sente em fenômenos como redes sociais (especialmente tiktok, mesmo quem não esteja lá pessoalmente é afetade) é uma aceleração de trends e não da cultura. ela, a cultura, parece meio estagnada - e acho que aquela news que mencionei logo no começo, sobre a sensação de estar presa num eterno presentismo, traz essa sensação.
sobre isso, super indico mais uma vez os vídeos do thiago guimarães. desta vez uma análise sobre a suposta tiktokização da cultura, com um desfecho muito bom:
séries
sim, a gente gostaria de rever coisas - acho que vou rever mad men em algum momento - mas por enquanto algumas séries que tenho curtido por aqui.
os outros (globoplay). gente, que boa surpresa. além do gênero de climão-em-locais-confinados, também amo o tudo-descendo-a-ladeira, que é quando as coisas vão piorando num crescendo bem absurdo. é uma série-irmã do filme argentino relatos selvagens (já assisti umas 3 vezes mas nunca é demais, a cena inicial do avião e gabriel pasternak é sensacional, além de nosso ricardo darín em um personagem icônico). em os outros, adriana esteves mora num condomínio imenso no rio de janeiro e seu filho é alvo de violência na quadra de esportes do prédio. o menino que o machucou não pede desculpas, o pai do menino vai tomando as dores, a mãe do menino entra no meio, o vizinho ex-policial chega junto também, o caos vai se formando e tudo só piora em alto nível. só vi dois capítulos, os novos são disponibilizados quartas e sextas. tenho me divertido muito e o elenco é ótimo - ainda que me desperte gatilhos da velha que era minha vizinha de cima e entre outras coisas já chamou a polícia pra fazer uma busca no meu apartamento (longa história).
the dropout (star+). fazia tempo que queria ver essa série sobre elizabeth holmes, que largou a faculdade e aos 19 anos e fundou uma startup que prometia mil diagnósticos com algumas gotas de sangue. é uma série do gênero tudo-descendo-a-ladeira porque a emboscada só cresce e vira uma coisa imensa, ela engana milhares de pacientes com diagnósticos errados e isso é a ponta do iceberg que envolve fraudes de patentes, roubo de tecnologia, investidores enganados (ok essa parte), mortes e um sem-número de desvios éticos. amanda seyfried é perfeita como a protagonista louquíssima, que inclusive engrossa a voz de um jeito mega caricato para enganar mais ainda as pessoas, igual a holmes da vida real. nos estados unidos, basta falar as palavras certas pra enganar e vencer, né.
links
amei as dicas de livros baseadas em coisas muito específicas da
por que amamos o dr. áuzio varella, que fez 80 aninhos e é um talismã, um pepito da medicina e das redes sociais. não deixem de ver também essa história do estágio soviético dele, ótima
essa edição da news da
tem absolutamente tudo a ver com esta, sobre pausas. adoro a escrita delaraíza costa está passando um tempo na itália e fez esse vídeo preparando uma linda foccacia, trazendo a dica que recomendo a todos - comam com mortadela e algum queijo cremoso
adoro o conteúdo da jornalista patricia ferraz, e ela está com uma série delícia sobre massas no insta. fiquem com essa receita do tagliatelle al limone
sextooou
sempre que possível no clima de rossy de palma
Seu texto me lembrou um fato legal e assustador no mesmo nível. Pesquisando um pouco sobre o ChatGPT (sim, o assunto já tá quase batido), descobri que cada dia são criados novos conteúdos que, para uma pessoa conseguir consumir tudo, demoraria mais de 20 anos. E aí passa mais um dia, com mais conteúdos, mais 20 anos para conseguir consumir tudo. Resumindo: alguém normal demoraria cerca de 60 anos para assistir tudo que foi feito só nos últimos 3 dias. (loucura). Não tem como parar um pouquinho pra curtir o que já existe não? Seria bom caminhar mais rápido nos ideais como sociedade e mais devagar em criação de conteúdo.
Que news deliciosa de ser lida. Tenho pensado muito nisso ultimamente, em "requentar" conteúdos que ja postei em algum lugar, mas cujo assunto é legal e a reflexão se mostra tão pertinente quanto quando foi compartilhada. Eu tenho a minha comfort band que é "Matchbox twenty" que mesmo tendo acabado de lançar album novo sigo apaixonada pelos antigos e ouvindo a discografia sempre que possível. Já meu comfort movie é de repente 30 que amo e assisto sempre, pq me da um quentinho no coração. Essa coisa dos livros eu preciso trabalhar, pq não tenho o costume de reler, mas vou incluir na meta de "requentar". Obrigada por esse conteúdo tão bacana! Um beijo!