.tochas
#53. a mulher da casa abandonada e atitude-tochas: a proporção que tomou. o que isso diz sobre nossa cultura? quais os limites e as responsabilidades? dicas pouco convencionais. sextou bem boneca.
ao menor sinal de dúvida, o ser humano já ergue sua atitude-tochas. atitude-tochas é aquele momento em que as pessoas reagem em manada, sem pensar, com um espasmo de indignação e ódio, para apontar culpados. não se está necessariamente em busca de verdade ou justiça, mas de alvos imediatos para descontar seu ressentimento, sua curiosidade mórbida ou o impulso de vingança e sadismo latentes, à espera da primeira brecha pra se manifestar de forma desproporcional e nonsense em alguns momentos.
tenho visto atitude-tochas em muitos episódios que trazem esse comportamento infeliz, na realidade e na ficção - campos cada vez mais misturados, diga-se de passagem. os famoso e bem narrado caso evandro traz as tochas que rapidamente condenam os ‘satanistas’, também presentes no caso dos meninos de altamira e na história do trio de west memphis, que inclusive inspirou o personagem eddie de stranger things. houve toda uma temporada de justificativas satanistas, ali pelos místicos anos 1980 e 1990. os tribunais baseados em evidências como “escuta rock e lê stephen king” não faltavam.
aliás, stranger things nesta última (maravilhosa) temporada exibe um exemplo claro do cidadão de bem branco e queridão da comunity que rapidamente vira um vingador armado da pior espécie diante da oportunidade de exercer seu ódio sobre alguém supostamente mais fraco. super atitude-tochas.
até mesmo na série a serpente de essex, ao primeiro sinal de qualquer mistério já se sugere que a culpada é uma bruxa ou algo do tipo. na política e em momentos pequenos, como os cotidianos cancelamentos ou mesmo na defesa de personagens de reality shows, também observamos a atitude-tochas rápida, tipo seita. pessoal carrega tochas portáteis pra acionar a qualquer momento.
os temas mais aleatórios desembocam com frequência nisso.
nem preciso dizer que a grande atitude-tochas da temporada vem do público do podcast da mulher da casa abandonada.
é um caso interessante o da repercussão, porque o tiktok conseguiu catalisar e multiplicar a história em uma proporção até então inédita num podcast - acredito que nem o caso evandro tenha alcançado tamanho frisson. obviamente, a narrativa de chico felliti dá o tom de deleite na profusão de detalhes que viram grandes PIPITAS na mão de quem ama uma boa narrativa. é saborosa a descrição dos envolvidos, dos vizinhos, dos cenários. o ser humano é aquela espécie que desacelera pra degustar melhor um acidente na estrada, então nada de novo até aí.
mas o inédito da coisa são a proporção e a intensidade que tudo tomou, reverberando a partir do tiktok e dos grupos que mobilizam e engajam emocionalmente milhares de pessoas. virou uma coisa totalmente fora do controle, à revelia da reportagem. tudo o que o telegrama toca, vira tochas:
rapidamente as atitudes-tochas surgiram. envolvidos viraram ‘personagens’ e a repercussão levou a uma devassa das vidas de todos, desde a vítima até os culpados e seus descendentes.
o povo ensandecido stalkeando e pichando o muro da casa, invadindo o prédio ao lado para tirar foto, drones na madrugada, o vizinho do filho da mulher da casa como celebridade, a casa onde mora aquela criatura perversa fetichizada e transformada em ponto turístico, cachorros libertados (necessário o resgate, isso nem está em questão) com um auê, lives, pessoas levantando documentações dos processos, analisando fotos, fiscais de heranças, novos especialistas de direito internacional. tudo virando babado e confusão. um fandom louquíssimo.
fico aguardando com muito medo e com minhas tochas o pessoal fantasiado de pomada branca na cara no próximo carnaval, porque sabemos que o ser humano é capaz de tudo. e quem poderia imaginar tamanha mobilização por uma reportagem.
sim, porque não devemos esquecer que o podcast vem construído como um audiolivro-reportagem de denúncia, com base em fatos de conhecimento público e comprovados, entrevistas, sigilos de algumas identidades, respeitando o silêncio e a fala dos envolvidos - ainda que traga nos relatos um repórter em primeira pessoa com um apelo casual, literário em certo ponto, compartilhando detalhes cotidianos e sons que trazem ainda mais texturas à história: o crime terrível do casal que manteve em condições análogas à escravidão uma mulher durante 20 anos nos estados unidos, e cuja mulher investigada pelo FBI foge para o brasil e vive em uma mansão em pandarecos.
evidentemente, há vários caminhos de crítica e elogio possíveis. mas comecemos com possibilidades de crítica, como a mulher da casa-grande abandonada ganhando o protagonismo como a personagem-título em uma história de escravidão. surgiram debates sobre branquitude, a white face à base de pomada trazendo uma ironia infeliz e involuntária, a necessidade de decolonizar a cultura que transforma histórias de violência com pessoas pretas em entretenimento, em ‘fic’, operando um esvaziamento pela via da espetacularização. também faz pensar (se há ou até onde vai) na responsabilidade de uma matéria que informa nome e endereço de envolvidos que participaram de um crime, levantando um caso parcialmente sem julgamento para ser examinado pelo olhar cada vez mais radicalizado das pessoas. eu ficava ouvindo a história e pensando que a mulher lá mora sozinha e corre perigo. na quarta feira dessa semana, houve a notícia de que a casa teria sido atingida por um tiro.
há muitos méritos do podcast, por outro lado. ele é um trabalho jornalístico de qualidade, com muita apuração, que não relativiza culpados e vítimas em nenhum momento, que traz uma denúncia grave e contextualizada com o que acontece infelizmente no presente. tem um roteiro muito bem escrito, trazendo reviravoltas surreais. então seria muito complexo responsabilizar a reportagem pelos efeitos que ela causa. fosse assim, não teríamos quase nenhum assunto nos jornais. o problema é sempre o ser humano. não há mais meios-termos, tampouco controle. nisso a gente perde um mundo de possibilidades. uma coisa não anula a outra.
e aí voltamos a atitude-tochas. essa mulher merece o que há de pior no universo e a roleta do karma girando? sim, com certeza. mas não vem ao meu, ao seu, ao nosso caso a realização dessa justiça, por mais que a gente se revolte junto. no entanto, a turma da atitude-tochas não pensa assim e está disposta a quebrar todos os pactos que seguram o último fiapo que detém a barbárie. em uma sociedade violenta como a nossa, dá medo de mais uma tragédia.
concordo bastante com toda a thread da ana freitas:
o que todo esse excesso de reações e emoções em torno do podcast diz sobre nós, nossa sociedade, nossa cultura? em uma realidade tão supostamente esclarecida, informada e medicalizada, somos cada vez mais vulneráveis emocionalmente.
e as emoções têm história: fascinante pensar que sentimentos se transformam culturalmente, na forma e na proporção que se manifestam. há sentimentos de hoje que certamente não existiam há 50 anos, especialmente quando consideramos os impactos da tecnologia, o ódio como estratégia de engajamento e outras tantas variáveis nas nossas sensibilidades. é uma loucura observar como a sociedade atual passa de uma atitude-tochas a um estado de apatia em segundos, em uma passada na timeline tudo vai indo e vindo. como nossa capacidade de indignação pode ser seletiva e distorcida?
tudo é tão extremo e ao mesmo tempo tão banal.
que tal assinar essa cintilante flows magazine e dar aquela alegria a uma pequena produtora de conteúdo? a mais recente edição para apoiadores falou sobre .futuros, inspirada em uma série que comecei a assistir e me deixou meio passada com as invencionices. era tanta tecnologia investida em coisas super nada a ver, para satisfazer caprichos humanos, mostrando a nossa capacidade de não aprender nada sobre o mundo mais uma vez.
falando em ser decolonial, tive uma boa surpresa com o filme RRR (netflix), que traz 3 horas de bollywood nessa pegada bacurau de libertação, mas com muitas dancinhas e lutas ótimas.
no início, comentei do caso dos três de west memphis, que inspirou o personagem eddie de stranger things. fiquei obcecada com a história dos meninos acusados de matar crianças, que sem nenhuma prova foram condenados à morte. eddie vedder, peter jackson e vários artistas se mobilizaram para provar a verdade e conseguiram a libertação deles muitos anos depois. damien echols foi um deles, escreveu um livro e deu essa entrevista muito interessante na biblioteca de NY:
a história e o julgamento (gente, bizarra a falta de provas) são mostrados no documentário paradise lost (em duas partes no youtube). ele é complexo de assistir por ser uma linguagem meio crua demais. mostra muito bem a atitude-tochas típica em casos como esses.
você também pode se interessar por essas edições anteriores, vai que
eu amo um tweet
sextou bem boneca e bem confusa
Nossa. Definitivamente melhor texto que li sobre. Amo a forma como vc constrói o texto. 💛
Que primor de edição pelo amor de Jesus como eu AMO sua prosódia