.solidão
#03. meu estilo de solidão. terapia, ritual e autocuidado. passei café no corpo. o gravador do andy warhol. oito filmes e séries.
*gente, primeiro uma errata, já que mandei na news passada um Christian BUNKER e o correto é Dunker, claro. o teclado corrigiu daquele jeitinho dele. e logo no início teve também uma concordância errada, mas vamos juntos superar tudo isso.
ai brasil, é bom demais ficar sozinha. desde pequena eu vivia a maior parte do tempo no quarto, de porta fechada, fazendo nada de mais. não tinha celular nem muita coisa à disposição nos anos 90, só lia (os mesmos livros), ouvia música (os mesmos cds e as mesmas fitas que eu gravava do rádio), depois ficava escrevendo (no diário volumoso ou depois no blog).
eu tenho uma mente meio infinita e não-linear, além de ser capaz de me entreter com as coisas mais aleatórias, como faxina. posso passar horas dobrando roupas à la marie kondo avaliando as peças que me trazem alegria. fico meio inerte em frente a tv às vezes, só pra me recarregar - devo ser uma das 0,3 telespectadoras da chef tv, um canal precário de gastronomia, entre outros lazeres duvidosos. sou a pessoa descrita nesta matéria, que não precisa de grandes estímulos, grandes tecnologias, coisas super grandiosas ou importantes o tempo todo. sou bem banal, na verdade.
mas claro, passou a ser mais complicado falar em solidão em tempos de pandemia. TUDO mudou. moro sozinha e amo, mas sinto saudade de fazer coisas sozinha - o que é totalmente diferente de apenas estar só aleatória. solidão é legal quando é escolha, não imposição.
morro de saudade de estar só em diferentes lugares e ocasiões: museus, cinemas, praças, viajando, andando na rua. minha solidão em lugares é o que favoreceu um dos meus esportes favoritos: people watching. é muito satisfatório observar gente, o que a pessoa veste, imagino logo o que tem na bolsa (eu aqui me expondo ahahaha), fico querendo saber a conversa dos outros, gosto de ouvir uma frase cortada sem sentido (‘…hoje ela pediu frango, então descongela’) ou de preferência um pequeno barraco nascendo (‘…esse filho da puta me ligando de novo’).
portanto, a minha solidão não é do tipo elegante/introspectiva num ambiente bacana em tons de hopper - cuja obra amo, apesar dele ter eclipsado sua esposa
minha solidão style vai mais na linha de curiosidades e absurdos, que coleciono
solidão ou vida adulta? quiz
me sentir bem estando sozinha, claro, jamais quer dizer que eu não ame companhia. gostar de estar só não é nenhum distúrbio. bom explicar: porque né, nesse mundo a gente precisa esclarecer pra não ter ninguém reclamando ah então quer dizer que (98% de hipóteses que começam com ‘ah então quer dizer que’ estão erradas segundo o instituto dataflows). não quero ninguém mandando indireta ou triste porque achava que eu gostava. gosto, seja quem for, mas entenda.
nada pode ser tão literal. tenho, aliás, pavor a coisas/pessoas literais. você dá um exemplo e então a pessoa se apega naquilo, sabe. ‘mas a vassoura não era azul?’ ‘não, era um exemplo’. eis um tipo da situação que reduz minha expectativa de vida.
no doutorado tive uma aula muito boa sobre individualidade e tem bastante a ver também com a construção de um espaço-tempo da solidão, especialmente entre os anos 1800-1900. há muitos exemplos de filmes e livros que nos mostram como especialmente as pessoas mais ricas vão passando a sentir uma intolerância à comunidade, à partilha, àquela aglomeração proletária toda (outros tempos: ricos avessos à aglomeração). os compartimentos das casas começam a se dividir mais, surgem os quartos separados, toda uma arquitetura que favorece a privacidade, a escrita dos diários, as leituras mais ou menos secretas. introspecção vira distinção e privilégio (ainda hoje é).
tudo vai construindo um self e um interesse por ele, uma invenção da subjetividade. nem sempre foi corriqueiro observar e descrever as próprias emoções. uma energy que culmina na psicanálise (eu poderia falar sobre horas disso).
tem coisas banais que a gente nem imagina que contribuíram com a individualização e experiências mais solitárias - um exemplo é o fone de ouvido e o walkman. a invenção da música escutada de forma privada colabora com a criação da intimidade. eu viajei demais nessa aula.
hoje, com o celular, ficou mais complexo falar em solidão, mas ela continua a existir e a se renovar. porém, acho que, diferente do romantismo do século 19 e de um incentivo que antes parecia existir pra gente entrar mais na gente, o tempo de hoje nos estimula a sair de nós e não nos aprofundar. ainda que todo mundo ‘faça terapia’ e tenha certo orgulho disso - vejo em qualquer programa na tv as pessoas falando com 3 minutos de entrevista que faz terapia ou ostentando pretensas síndromes como um charme. a própria banalização da palavra terapia é reveladora: cozinhar, passar um batom, esquentar uma água viraram ‘uma terapia’, sendo que terapia sem aspas seria um processo essencialmente longo e desafiador.
o autocuidado rapidamente vira isso também - capaz de ser uma expressão que já nasce com vocação de autoengano e consumo. passar uma lixa no pé e acender uma vela de baunilha virou cuidar de si. tô julgando, gente, me segura, mas é inevitável. meu ponto é esse paradoxo do fetiche com terapia e autocuidado em contextos tão superficiais. nem vou incluir a palavra ‘ritual’ senão a newsletter não termina hoje. qualquer coisa que antes era só uma tarefa foi promovida a ritual. varrer a casa. regar a samambaia. fazer uma lista num caderno. tomar banho então, virou um super bowl cheio de momentos, atrações, significados. exaustah.
uma vez fui fazer um ritual (eu raramente disposta, durou meia hora no máximo). falei: vou aproveitar esse café moído e fazer uma esfoliação no banho, me energizar (risos) sem gerar resíduos para o planeta e então coloquei numa vasilha, misturei mel. no final parecia que eu tinha voltado da corrida ao ouro em serra pelada. imunda. o box ficou uma sujeira que nem jesus na causa. horas HORAS desperdiçando água da cantareira afastando com o pé o café pro ralo. taí meu ritual. uma pegada de carbono imensa.
na propaganda de amaciante que tava passando aqui nesse momento, tinha água micelar pra roupa também viver um ritual. juro. está tudo ao nosso redor (estou girando), perdemos o controle
parece que isso tudo de ritual-terapia-autocuidado jogados num balaio lança uma luz em coisas genéricas de propósito, mas com uma aura. defendo a banalidade das coisas, nem tudo precisa ser repleto de narrativa.
mas claro: nós e o brasil estamos tão lascados que faz todo o sentido o autocuidado ter virado um pijama limpinho (ai amo) e “tá tudo bem”. agora pode não ser o melhor momento de viver a solidão plenamente e descobrir algo sobre si. ou vai que esse caos criou sua hora perfeita e você resolveu se achar. enfim, apenas siga seu coração - longe de mim causar intriga de você consigo mesme.
viajando aqui nessa história das mensagens encontradas em uma garrafa, nas escavações ao redor do museu do ipiranga:
um livro que me despertou a vontade de escrever sobre solidão foi ‘a cidade solitária’, de olivia laing. uma das melhores leituras do ano e da vida.
olivia se mudou para nova york, vivia sozinha, começou a explorar a cidade por meio da arte e ficou pensando de que são feitas as conexões e a intimidade. seu livro é um encontro de várias décadas e de personagens icônicos que ela vai recuperando a cada capítulo - em comum, tinham uma história pessoal de solidão em alguma medida.
a solidão no livro não é tratada como problema individual, ela expõe como a sociedade, as grandes cidades e instituições como a escola podem perpetuar o ciclo de isolamento para algumas pessoas e as torna vulneráveis. fala de como a gentrificação está nesse processo e do quanto a solidão é política. de hopper a andy warhol, é tanta coisa interessante que só lendo mesmo.
aqui ela fala como andy warhol se relaciona com seu gravador e a importância das máquinas na vida dele. e como a máquina a preencher espaços vazios é algo absolutamente atual que ele antecipa em meados dos anos 1960:
“… é o empurrar e o puxar da intimidade, um processo que warhol achou muito mais administrável depois de perceber as habilidades mediadoras das máquinas, a capacidade destas de preencher um espaço emocional vazio. este primeiro aparelho de tv foi tanto um substituto do amor quanto uma panaceia para as feridas do amor, para a dor da rejeição e do abandono. (…) tornar-se uma máquina, esconder-se atrás de máquinas, empregar máquinas como companhias ou administradoras de comunicação e conexão humanas: andy estava sempre na vanguarda (…) para warhol, a tv da macy’s foi o primeiro de uma longa fila de substitutos e intermediários. (…) mas, diferentemente da tv, que era estática e doméstica, meramente um transmissor, essas novas máquinas também lhe permitiam registrar o mundo à sua volta, capturar e acumular o lixo confuso e cobiçável da experiência. o favorito era um gravador, um aparelho que transformou tão radicalmente sua necessidade de pessoas que ele o apelidou de minha esposa”
(laing, olivia. a cidade solitária. anfiteatro/rocco, p. 68-70)
pois então. fui achando que seria mais um livro sobre arte e encontrei um livro sobre vários mundos.
olivia escreveu recentemente para o the guardian um artigo sobre o futuro da solidão, em inglês.
vendo
the handmaid’s tale (hulu): se me derem dez temporadas de elisabeth moss, eu assisto. essa mulher é minha cachaça. quando eu já tava bem enjoada, 9752 episódios em que nada novo acontecia, vem a sequência a partir do episódio 5 da 4a temporada pra tremer todas as bases. amo babado e reviravolta.
servant (apple tv): série de suspense parcialmente dirigida pelo shyamalan, narra a história de um casal rico com um filho. eles contratam uma babá e, quando ela chega na casa, tudo desanda. cada episódio vai acrescentando um mistério diferente. curtindo. o cara do casal é chef, então amo ver a cozinha também.
calls (apple tv): ousada essa série. nem conto o formato dela pra não quebrar a surpresa, mas são diálogos de uns 12 minutos em cada episódio, tipo minicontos de suspense. é tão inovador que é retrô - quem assistir vai entender o motivo. super me envolveu. dizem que é melhor ouvir com fone, no celular, para ter uma experiência babado.
vi
honeyland (vi num site do sesc, acho que saiu do ar, mas vale): que beleza de documentário, que ganhou Oscar e conta a história de uma senhorinha que cuida da mãe e cultiva mel num lugar absolutamente isolado da macedônia do norte. lindíssima a relação e o respeito dela com as abelhas, com a natureza, com o tempo. claro, até que chega alguém pra perturbar a paz da criatura. porque = ser humano. lindíssimo.
nunca raramente às vezes sempre (telecine): muito bom e esnobado no último Oscar, conta a história da autumm (atriz excelente, sidney flanigan), que quer/precisa dar fim a uma gravidez não planejada. a sensação de isolamento e desajuste dela é muito comovente, a jornada dela é contada de uma maneira muito interessante. fiquei muito presa nesse filme, recomendadíssimo.
onde está o coração (globoplay): série maravilhosaaaaa que vi em pouquíssimo tempo com a letícia colin (rainhaaa). ela faz uma médica rycka que se vicia em crack. muito humana e aflitiva em vários momentos. a cidade de são paulo é personagem, cenário da solidão e do caos da protagonista.
cruella: para aqueles momentos em que a gente quer apenas jantar uma pipoca e mais nada. a semelhança com ‘o diabo veste prada’ é meio gritante - tipo a caricatura da empresária-megera-genial-autoritária que é mais vítima do que vilã da indústria da moda. o figurino é de fato muito legal. gostei, mas acho que poderia durar 20 minutos a menos. amei todos os cachorros do elenco, reais ou não.
tehran (apple tv): tava órfã de série de espionagem desde killing eve (amoooooo, especialmente a temporada um), então achei essa série israelense, com uma agente que vai disfarçada até o irã para desligar um reator nuclear. começa muito bem, mas ali pelo episódio 5 a protagonista começa a entrar em cada emboscada que meu deus. depois retoma o prumo. as músicas são mara, sente o groove da abertura:
(netflix perguntou se eu tava e eu: não tava)
autocuidado é isso, né brasil. beijos e até a próxima manhã de sexta ;)
encontros e coincidências demais em um texto só pra não amar e não assinar (também moro sozinha, também sinto falta de fazer coisas sozinha, também quero demais ler esse livro da olivia laing, inclusive escrevi sobre ela pra próxima edição da minha news hahah <3)
não vejo a hora de receber as próximas no email!
não sei como cheguei aqui só sei que estou amando!