.proposta
#37. muito conceito em comidas, bebidas, prédios, arte. origens recônditas. curadoria. mistério. do pacto à revolução. minhas cerâmicas. ciática, fuga, rolê. três filmes de arte com proposta.
nesse mundo de performance. a palavra proposta está aí. nada é mais por acaso. um capuccino tem que ter abordagem. ‘você já conhece a proposta da nossa micropadaria artesanal?’.
as comidas têm proposta e ingredientes de origens cada vez mais recônditas - ‘essa castanha é encontrada apenas em seis árvores orgânicas do cerrado que só crescem na permacultura duas vezes ao ano e a gente vai até lá buscar de bike porque os pratos do nosso restaurante não têm pegada de carbono’.
roupas também são carregadas de explicações, nunca é só uma blusinha branca - são três blusinhas tamanho xppp bem soltinhas numa arara em uma loja meio vazia tocando brasilidades, o que transmite a aparência de curadoria.
também são frequentes os prédios com proposta. só aqui ao redor de casa umas dez torres feias de kitnets foram erguidas nos últimos dois anos. crescem mais que hortelã. as construtoras tentam muito empurrar um estilo de vida de pagar 500 mil pra morar em 15m2 sem cozinha como se fosse prático, minimalista e moderno. ‘menos é mais’, ‘cápsula’, whatever.
em são paulo, especialmente para quem mora no centrão expandido, a cada calçada nos deparamos com uma proposta. algo escondidinho. se além de secreto for pequeno e abrir em horários alternativos, melhor, porque transmite a ideia de curadoria de clientes também. uma portinha onde a gente toca a campainha, fala a senha que foi enviada 15 minutos antes, entra numa borracharia, mas lá no fundo depois de dois lances de escada e uma ponte pênsil encontra-se o bar misterioso de drinks e samambaias aberto apenas as segundas terças do mês, de 15 às 17. o espaço também oferece workshops de taxidermia para grupos pequenos.
obviamente, quem não entende a proposta é execrado por todos aqueles que sustentam o conceito, por mais frágil que ele seja. sim, normalmente são conceitos frágeis, uma mentira contada mil vezes que vira verdade, um pacto em que todos daquela bolha concordam e defendem - mas sabemos que é tudo fingimento.
as pessoas precisam se auto convencer de que estão pagando muito caro por algo comum chamado de ‘releitura’ num lugar repleto de gente que igualmente acredita na tendência. ‘como assim você ainda não foi na galeria xis especializada em arte etérea com fumaça de marlboro light?’. quem não adere às propostas é frequentemente julgado.
aconteceu comigo anos atrás. eu e mais dois amigos fomos num lugar então da moda. quando chegamos, parecia que a gente tava entrando sem convite numa festa fechada. todos os olhares foram na nossa direção: é a sensação de entrar num lugar com proposta. a gente deu uma volta e todo mundo estava sentado sem conforto em cadeiras de praia e pneus (pneus). o drink era caro, a gente julgou as acomodações, os róstos e roupas de todos. fomos embora pra um bar convencional, onde fomos felizes livres de narrativas.
aconteceu com um amigo meu. ele foi num bar de drinks e recebeu um nano drink num copinho de 15 ml que parecia um exame. ele então educadamente sugeriu ao gerente que apenas incluíssem no cardápio a quantidade em ml, pra alinhar a expectativa (risos) de que você vai receber uma amostra e pagará o valor cheio de um drink convencional. pra quê. quebrou a proposta de cristal, e expôs um ranço absoluto dos donos, que passaram a usar equivocadamente a ideia de ‘diálogo’, ‘lugar’, ‘democratização do drink’ (adoro viés político), ‘ingredientes selecionados’ pra no final dizer que meu amigo tava errado e intransigente, por não ter entendido a bendita proposta.
no momento em que a proposta é questionada, emerge entre eles um medo absoluto de serem descobertos. é tipo um transe que se encerra e todos acordam e se olham, conscientes. potencialmente pode ocorrer o início de uma revolução dentro de um bar de vinhos em um rooftop. imagina como seria fascinante.
qualquer dia, isso vai acontecer aqui no centro de sp. de repente todos perceberão que estão pagando o dobro pra receber metade para financiar a fermentação natural de alguém independente mas que é herdeiro.
e no final, meu povo, é só uma gin tônica.
sempre volto ao conto do andersen, a roupa nova do imperador. pra mim é o texto precursor do poder - e da fragilidade - do storytelling. tipo ‘é uma empadinha com história, com significado’.
(…)
"Será que a Vossa Majestade por gentileza poderia se despir," disseram os trapaceiros, "para que possamos auxiliar a Vossa Alteza nos ajustes da nova roupa diante do grande espelho?"
O imperador se despiu, e os vigaristas fingiram colocar nele a nova roupa, peça por peça, e o imperador olhava para si mesmo no espelho de todos os lados.
"Como ela lhe caiu bem!" "Como ficou bonita!" disseram todos. "Que modelo arrojado! Que cores belíssimas! Esse é um traje magnífico!"
O mestre das cerimônias anunciou que os carregadores do pálio, que haveriam de desfilar durante a procissão, já estavam prontos.
"Eu estou pronto," disse o imperador. "A minha roupa nova não caiu perfeitamente bem?" Então ele se virou mais uma vez para o espelho, para que as pessoas pensassem que ele estava admirando os seus novos trajes.
Os camareiros, que iriam ajudá-lo a carregar a cauda, estenderam suas mãos até o chão como se estivessem levantando a cauda, e fingiam segurar alguma coisa em suas mãos, eles não queriam que as pessoas soubessem que eles não estavam vendo nada.
O imperador marchava na procissão sob o belo pálio, e todos que olhavam para ele na rua e pelas janelas exclamavam: "De fato, o novo traje do imperador é incomparável! que longa causa que ele tem! Como a roupa caiu bem para ele!" Ninguém queria que os outros soubessem que eles não viam nada, pois seriam considerados incapacitados para o cargo que ocupavam ou tolos demais. Nunca as roupas do imperador foram tão admiradas.
"Mas ele não está usando nada," disse uma pequena criança afinal.
"Deus do céu! ouçam a voz de uma criança inocente," disse o pai, e um sussurrava para o outro o que a criança havia dito. "Mas ele não está usando nada", gritaram afinal todas as pessoas. Isso causou uma forte impressão no imperador, pois lhe pareceu que as pessoas tinham razão, mas ele pensou consigo mesmo, "Agora eu vou ter de aguentar isso até o fim." E os camareiros caminhavam com mais dignidade ainda, como se carregassem a cauda que não existia.
amo.
não sei se foi um caso de proposta, mas boa essa história.
a falta de proposta dessa newsletter se ilustra bem (risos). fui citada na news-irmã de gaía, na edição sobre ser consistente, exatamente na semana em que furo a publicação da minha e não envio a tempo. é sobre isso :)
sei que cerâmica geralmente envolve proposta. mas no fim de semana passado, em uma proposta primitiva autoral para aterrar, fiz um pequeno curso.
as pecinhas ainda serão esmaltadas e queimadas (depois mostro se não racharem no forninho), mas compartilho com vocês minha humilde produção destinada a servir petiscos (o tempo da aula tava acabando e saí fazendo todas as espátulas amassadas possíveis, bem agressiva, pra não devolver um grama de argila. relaxar sim, sem jamais ter prejuízo).
curto essa conta das modelos com ciática. uma ironia maravilhosa com a proposta no action de moda.
adorei essa fuga
tô assim numa pegada sem proposta, querendo uma vida ingênua e simples (que configura proposta, sei que não há como fugir).
amo esse desespero pré-pantanal e aguardamos a novela.
filmes
uma dica bem legal pra reconhecer um filme com proposta é o final.
finais bruscos, com um corte seco, normalmente indicam filme europeu com proposta. os americanos, por exemplo, vão formatando o final 45 minutos antes de terminar, pra deixar tudo resolvido e não deixar nenhuma ponta solta para satisfazer o espectador. já o cinema europeu normalmente não tem apego nem explicação, simplesmente corta abrupto e fica cult.
baixei o mubi para uma semana de teste grátis e assisti a três com bastante proposta, que coloco aqui em ordem crescente.
exemplo de como a sinopse muitas vezes vende o filme, daí ele é só proposta e não se sustenta. a ideia era que uma família vai passar férias em uma casa, acontece uma invasão domiciliar e as relações entre todos se deterioram. na prática, parece uma câmera ligada captando uma família comum e nada interessante acontece - até que ocorre o corte final e ficamos com cara de tacho. é o que chamo de proposta gaslighting, porque a gente fica se achando meio ignorante.
é mais um filme com a sinopse meio trocada, porque comprei a ideia de que era uma história meio de terror. não há terror, mas tem um tom de constrangimento que amo, além de uma mensagem e algo meio surrealista, então segurei. mostra um casal dono de um rebanho de ovelhas que vive num lugar remoto na islândia (ou seja, muitos silêncios na trama). eles sofrem com a morte de um filho mas recebem uma inesperada cria. é de arte, mas vale considerar.
ó, esse tem proposta, uma fotografia linda e história com reviravoltas (amo). não tem a pegada tão grande de arte, mas tem cenas fisicamente desconfortáveis. a protagonista chama hunter e vive um casamento perfeito, numa casa envidraçada perfeita e anda sempre impecável (os maiores babados envolvem casas envidraçadas, né, tipo big little lies, nine perfect strangers e tantas outras). obviamente é uma fachada que começará a ruir, quando emergir sua compulsão. tem momentos surrealistas (tô vivendo essa vibe) e uma mensagem feminista sobre corpo e autonomia. curti.
sextou relaxante com luz natural.
e vou abrir espaço para recebidinhos no pix luciana.andrade@gmail.com, se alguém quiser me oferecer um cafezinho um livro uma roupa bonita.
demais demais! como você escreve bem
Rolei de rir, você é maravilhosa, quer ser minha amiga