.não estou pronta
#07. voltar ao normal. nojos que impedem minha inserção na sociedade. traquejos e fingimentos. 5 livros que têm a casa como protagonista. uma história para morrer de rir. blackbird.
não me entendam mal, eu tô muito feliz com a vacina e todas as pessoas que já alcançaram esse sonho (enquanto escrevia essa news, ainda não tinha chegado minha vez, mas tava quase). mas a perspectiva do retorno à vida social ao ar livre é algo que passou a me inquietar, mesmo que não seja pra agora agora. afinal, sofrer por antecipação é meu sobrenome. estou preparada para retomar a vida sem distanciamento no futuro?
nojos
primeiro pelos meus nojos, tenho alguns. nem falo de segurar a barra do ônibus ou do metrô (evito quando posso e procuro me equilibrar solta enquanto fortaleço o core nas manhãs).
falo de coisas tipo self service - pessoas falando acima da comida, pra mim, é o mesmo que criança lançando um sopro molhado no bolo de aniversário que todos compartilharão. é uma imagem bem recorrente pra mim. além disso, cultivo um nojo secreto de comer com talher de fora de casa - um garfo que passou por mil bocas, se a gente parar pra pensar nas diferentes camadas não dá. ok, posso levar meus próprios talheres, então vamos pro próximo.
outro nojo sério é de banheiro (qualquer banheiro, mesmo que pareça limpo). normalmente nesses casos faço apneia durante os 8 minutos que passarei lá, pra evitar aspirar o vapor de descargas alheias misturadas. tudo PAIRA ali no ar, nunca há janelas, então fica aderido aos azulejos e à pia, tudo, caso vocês não tenham ainda pensado sobre isso. evito como posso as maçanetas dos banheiros (o terror para mim está nos detalhes). e como faço? tenho minhas estratégias: quando é no shopping sempre espero alguém sair e enquanto a porta vai fechando eu corro pra passar, tentando não parecer que é fuga ou loucura.
ah, e fico em pânico com pia molhada por águas de outras pessoas, cabelo no ralo (sempre um fio de 45cm ali me olhando isolado) e um blend de espumas alheias de cremes dentais que não desceram pelo ralo. minha vida é sempre essa linha tênue entre realidade e monty python.
GENTE, NÃO É FÁCIL, TÔ AQUI ME ABRINDO.
minha sintonia com a casa tem se aprofundado em tanto tempo reclusa. chego a esse ponto de ter desenvolvido uma habilidade única, uma conexão muito íntima com meu chromecast. uma coisa de pele. sempre adivinho todos os horários e, quando olho pros relógios, eles sempre marcam coisas duplicadas tipo 10:10, 18:18, 20:20 etc
traquejos e defesas
evidentemente, uma das maiores dificuldades de uma futura volta à convivência é todo o traquejo social envolvido para estar entre pessoas.
nada contra pessoas, inclusive tenho amigos que são, mas é preciso fazer muitas MUITAS concessões para frequentar a sociedade. será que ainda tenho essa energia, essa itaipu dentro de mim? entrar em pânico é meu sobrenome.
algumas banalidades, somadas diariamente, podem nos causar fadiga como voltar a um mundo exterior mais barulhento e mais poluído (em sp são coisas bem intensas). aliás, fiz uma news sobre silêncio, caso queira dar uma olhadinha sem compromisso. enfim, a impressão é que meu cérebro e meu espírito só pensam em se defender de tudo, da falta de estabilidade de um velho mundo novo. não passamos esse tempo todo descansando confinados em casa - muito pelo contrário.
já estamos exaustos, então um retorno e uma nova adaptação podem nos desgastar ainda mais. novas relações, novas temporalidades, novas dinâmicas pra tudo. cansada desde agora.
mas voltando sobre a importância do traquejo, que certamente será revalorizado no nosso retorno à convivência com todo esse jet leg social. no dia a dia prevejo que enfrentarei um custo emocional por
não poder esconder o olhar revirando diante de situações absurdas;
não poder fingir que não tô ali e que a conexão caiu estando em pessoa num momento constrangedor;
precisar fingir que a prioridade supérflua de alguém é minha prioridade também.
enfim, todo um autocontrole disciplinar básico da vida adulta e algum repertório de fingimentos e fugas rápidas que a gente precisa ter para manter nosso círculo de pessoas, nossos empregos e eventualmente não ir preso.
fingir, meu povo, não é coisa da minha cabeça. no escritório da canon na china, o funcionário só entra depois que sorrir para a câmera. e sim, sei que mesmo em casa não estamos protegidos e seguros: esse podcast conta alguns recursos escabrosos que empresas usam para monitorar funcionários, incluindo o som do ambiente em que a pessoa está.
tudo o que a gente quer é ter nossos momentos birds with threatening auras na paz do nosso lar (gente, eu sou este perfil ahahaha).
não podemos desconsiderar as roupas como outro inconveniente do retorno ao mundo exterior. conforto é fundamental. sem rodeios: estamos sem sutiã há um ano e meio e não queremos abrir mão dessa liberdade. forever young tocando alto.
ansiedades
também tem um aspecto que poucos irão admitir mas com certeza vai voltar a rolar: aquela ansiedade social, o desejo (compreensível) de recuperar o tempo perdido. ‘precisar’ estar fora de casa no fim de semana conhecendo lugares, estando em lugares, postando que está em lugares e dizendo que está desconectado em lugares.
certamente viverei uma preguiça em dobro ao pensar em sair de casa. nada contra amigos, amo todos, mas não há como negar essa eterna busca do equilíbrio entre ter alguma vida social e querer sumir por uns dias.
vamos naturalizar sumir por uns dias, né gente.
é saudável sair do panóptico às vezes.
deve ser cringe esse dilema vida social/vida reclusa, mas eu não poderia me importar menos com o julgamento da geração z, enquanto permaneço aqui imersa na minha banheira de café com boletos.
e você: está pronte para voltar a conviver e perder esses pequenos tesouros do cotidiano?
maiores saudades
sempre é plausível que eu me contradiga tremendamente e, quando essa newsletter sair, eu já esteja vacinada dentro de um cinema com mais 200 pessoas sem máscara dividindo a mesma latinha de itaipava.
aliás, quais são suas maiores saudades? deixa nos comentários ou me manda email desabafando ;)
entre as minhas principais saudades estão:
correr sem máscara
ir ao cinema
mesinha de bar ou de café na calçada
passear bem calma no supermercado lendo todos os rótulos e novidades
viajar
hoje é mais um dia sem acordar em nova york, sempre bom lembrar:
assuntos sérios
até então falei apenas de coisas em um contexto de privilégios, de quem pode escolher se isolar. mas é importante pensar que muitas pessoas sentem ansiedade quanto ao retorno ao trabalho devido às agressões que sofrem. especialmente mulheres e mais ainda as mulheres negras.
nesta matéria, elas comentam microagressões imensas que enfrentam, tipo “ter seu cabelo tocado ou pessoas comentando sobre seu corpo, ou perguntando ‘oh, o que você está comendo? tem um cheiro estranho’. É por isso que nem todos queremos voltar para o escritório.” gente, que inferno. o ser humano é horrível. não por acaso, 97% dos trabalhadores negros nessa pesquisa mostram que preferem o trabalho remoto ou um modelo híbrido para sofrerem menos com essas questões. grave demais.
sem contar casos de machismo e assédio moral e sexual - que seguem acontecendo mesmo em ambientes de trabalho remoto -, cujo risco se intensifica no ambiente real.
aliás, chocada mas jamais surpresa com essa pesquisa:
o que seria um novo normal?
mas enfim, pra mim é um sintoma interessante da sociedade a obsessão de um futuro que seja um ‘novo normal’.
primeiro que achar aquela vida anterior ‘normal’ e querer renovar a assinatura já me parece estranhíssimo. segundo, quando a gente tem chance de inventar algo novo, prefere voltar duas casas para um lugar que - sabemos - não era exatamente tão ok e seguro: o passado. e veja, não falo de criarmos nada grandioso, mas exercitar algo criativo, levemente maluco ou apenas mais bonito, nem que seja pra experimentar e ok, voltar ao normal.
o diferente não é necessariamente melhor, mas dá uma movimentada. a gente se acostuma a evitar o novo achando que é algo sempre imenso, que vai dar trabalho, mas não necessariamente. enfim, eu com meus botões aqui.
jovens CEOs de si
legal essa matéria da vox sobre a cultura dos jovens monstrinhos da produtividade do tiktok, divulgando muitas regras para não procrastinar. jovens adultos (cada vez mais jovens) achando que incorporar mais canetinhas marca-texto, um excesso de atividades organizadas em planners decorados, post its e muitas coisas transformadas em listas sempre decoradas (faça a cama, medite, beba água etc) pode ajudar a ser mais eficiente nos estudos - e, claro, ajudar a amar trabalhar no futuro. vem super a calhar para o capitalismo decorativo.
cada época com seu tipo de adolescência, não é mesmo.
no meu tempo, a gente não tinha planner, mas agendas cheias de lixo (papeis de sonho de valsa, ingressos de cinema, canudos, tudo no limite entre reciclável e não reciclável), que a gente carregava com a pasta de papel de carta pra todo lugar. a xuxa que praticamente criava a gente. escapávamos da morte a cada bala soft, era intensa nossa juventude.
🔸 li (5 livros em que a casa tem um papel protagonista)
laços, domenico starnone. li três romances desse autor tipo em uma semana, totalmente absorvida pelo jeito dele de escrever. não por acaso, domenico é super comparado a elena ferrante (outra cachaça na minha vida) e rolam mil especulações sobre eles, se domenico é marido da elena ou se ele É a elena, adoro. mas esse foi o livro dele de que mais gostei. um casal com mais de 50 anos de união volta das férias e encontra seu apartamento revirado. igualmente revirada fica a vida deles, pois o marido encontra antigas cartas e começa a encarar várias lembranças de quando abandonara a esposa para viver uma paixão fora do casamento. é um fluxo sensacional de acontecimentos e sentimentos que vão sendo despertados, aquela lama que vem, que sobe, babados napolitanos que só starnone e ferrante sabem proporcionar.
um apartamento em urano - crônicas de travessia, paul b. preciado. que livro potente e sensacional. as crônicas são excelentes, falam sobre vários temas contemporâneos e acompanham a transição de beatriz para se tornar paul, filósofo e dissidente do sistema sexo-gênero, portanto múltiplo e maravilhosooo. no prefácio divino, “uma transformação constante, sem identidade fixa, sem atividade fixa, sem endereço, sem país. você chamou este livro de um apartamento em urano porque não tem nenhum apartamento na terra, apenas as chaves de um lugar em paris (…). você não se muda. você se move, mas não se muda. (…) as transições são a sua casa”. aaaaaaaa. a introdução é outro primor, enfim, leiam leiam leiam. a mesa de paul e caetano na flip do ano passado, meu deus, que acontecimento. de repente começam a falar de grande sertão veredas, paul anotando as referências de caetano, eu poderia morar um mês nesse vídeo.
meu ano de descanso e relaxamento, ottessa moshfegh. a moça resolve passar o ano dormindo (quem nunca) em seu apartamento em ny à base de remédios, em uma tentativa de autoalienação da realidade. privilégio, claro, mas uma narrativa interessante e ácida que traz à tona alguns relacionamentos e hábitos tóxicos. a sensação de toda a leitura é ficar meio grogue junto com ela.
os tais caquinhos, natércia pontes. o livro transmite a sensação de caos, sujeira e acúmulo do apartamento onde se passa boa parte da história de duas irmãs com o pai. o acúmulo também está na própria forma fragmentada do texto, com muitos detalhes e pequenas observações irônicas como “dentes de alho brotando na geladeira não são tão asquerosos quanto parecem, podem muito bem ser interpretados como a manifestação do emocionante mistério da continuidade da vida mesmo sob circunstâncias adversas”. para além da desorganização, toca em pontos como a dor do amadurecimento e relações familiares.
léxico familiar, natalia ginzburg. sei que é uma heresia, mas não ameeeei esse livro, ainda que entenda a importância histórica de trazer uma narrativa que se passa na itália na segunda guerra sem focar propriamente na guerra. a opção é olhar para o cotidiano de uma família para dele reter as pequenas coisas, em meio aos escombros do mundo lá fora. proposta bonita, prosaica, mas acho que não era meu momento e achei monótono, ainda que muito bem escrito.
🔸 vi (5 coisas para se sentir em casa)
adoro o programa que história é essa porchat, no gnt. o lance de reunir uma galera numa rodinha para contar coisas bizarras da vida é uma das melhores ideias dos últimos tempos. e esta história, meu povo, é uma das mais hilárias que já vi. aquele um minutinho e meio de que você precisa hoje
dois perfis no instagram que dão paz, a alma da casa e como a gente mora, com casas e detalhes lindos para nos inspirar
the parisian agency, exclusive properties (netflix). às vezes a gente só quer um reality gostoso de visitar casas chics em paris, ver a cidade e não pensar em nada no sofá. pois é esse. tem apenas 5 episódios por enquanto e vale julgar os ricos chatíssimos. é interessante o formato, ainda, por acompanhar a vida da família de corretores de imóveis (por incrível que pareça é legal). e a avó deles é a pessoa mais fofa da semana
tô mais de 5 anos atrasada nessa história, a fã mais fajuta do paul mccartney, mas sempre é tempo. no dia do níver do paul (18 de junho, religiosa e discretamente comemorado por mim todos os anos), vi uma entrevista na tv em que ele contava essa história quentinha. a música blackbird foi inspirada na imagem de duas estudantes negras que, no final dos anos 1950 se matricularam em uma escola até então exclusiva de brancos. elas enfrentaram a bizarra segregação e toda a discriminação fortíssima naquela época (e ainda hoje) nos estados unidos. a imagem delas entrando de cabeça erguida na escola com os pré-minions gritando atrás delas é um ícone. paul viu e compôs a música, que seria gravada anos depois. e outra parte linda: em 2016, as meninas foram num show do paul no arkansas e tiraram uma foto com ele, o auge.
vamos sextar bem fierce com essa dancinha, alô tiktokers aprendam 👄
e pessoal, muito obrigada pelos comentários, emails, compartilhamentos, indicações, likes, leituras e até o simples ato de abrir no email essa humilde newsletter.
tá lindo demaaaais, estou tocando na tela agora, VOCÊ PODE ME SENTIR?
Luciana, somos praticamente a mesma pessoa. Adorei cada linha dessa newsletter.
Nossa, me identifico demais com as questões que você trouxe! Eu acho que virei outra pessoa nessa infinitena, adorava uma reunião com os amigos ao redor de uma mesa de bar, mas eis que resolvi parar de beber e acho que isso vai mudar drasticamente minha forma de interação social quando houver interação social novamente. Tenho medo de não me conectar mais com as pessoas e também medo de ficar isolada e triste. Já senti isso uma vez qdo me divorciei, eu queria permanecer no mesmo círculo de amigos, sofria qdo via fotos e stories da galera reunida, mas qdo tentava participar, mesmo com todo mundo sendo muito acolhedor, sentia que eu não fazia mais parte daquilo e sofria tbm, um deslocamento estranho. Enfim, descobriremos (em breve, espero).
Tô com muita saudade das minhas tias e primos, com quem cresci e os visitava regularmente, e de andar à toa em São Paulo (moro numa cidade próxima, mas não faz sentido ir lá andar sem rumo no meio da pandemia).