.conversa
#38. nem sempre é sinônimo de diálogo. exemplos do bbb, microfatos e oito passos para identificar o padrão. sequestro de conversas e rinha de eus. giro de news. pão de batata da rita lobo: façam.
nunca conversamos tanto e nos entendemos tão pouco. me arrisco a fazer essa afirmação categórica, porque o lance de redes sociais e interatividade são essa potência que dispensa apresentações. elas nos fazem, em tese, passar o dia conversando. mas claro, nem todas as conversas configuram diálogos - algumas, pelo contrário, são na prática duas pessoas entregando seus monólogos. todos já fizemos um pouco isso e já conhecemos alguém que fez.
normalmente as pessoas romantizam a ideia de conversa. como se fosse necessariamente caminho de soluções, rumo à paz, aquele clima we are the world we are the children. essa superestimação só amplia a sensação de fracasso, né. de fato, às vezes as conversas ajudam numa solução; mas nem sempre. você vê, todo dia rolam mil conversas dos países mas não se chega em um consenso pra acabar com a guerra.
gosto e levo muito pra vida a frase do foucault quando ele comenta que o saber ‘não é feito para compreender, ele é feito para cortar’. acho maravilhosa essa ideia porque liberta a gente dá ideia de que o saber tem compromisso com compreensão e explicações. o saber para ele está muito mais ligado a questionar verdades, a perguntar como e por quê chegamos a tal ideia que virou verdade. quanto mais a gente sabe, mais atormentado se fica e mais se conclui o quanto sabemos pouco. idem sobre conversas: não chegam necessariamente a acordos, mas abrem questões, problematizam e podem mexer com o juízo das pessoas.
a expectativa de acordo e compreensão meio que tira da gente a perspectiva que a conversa pode ganhar, na sua função de incomodar, desagregar, apontar incoerências. a briga também é uma conversa, no fim das contas. acho que dá até uma tranquilizada no coração assumir que existe essa dimensão.
no bbb por exemplo (nossa newsletter passando de foucault ao bbb agindo naturalmente kkk), uma das demandas mais frequentes dos participantes é pela conversa. a todo momento:
“nossa, mas se você pensa que sou uma pessoa manipuladora, era só chegar e me procurar para conversar”
“puxa, se você iria votar em mim, era só chegar e me procurar para conversar”
“sabe aquilo que aconteceu e você me joga na cara há 4 meses? era só chegar e me procurar para conversar”
“vamos conversar sobre aquela conversa?”
primeiro que eu não teria A MENOR energia, gente. sério. ficar remoendo e relembrando microfatos como eles fazem todo dia. ‘lembra quando você não me ajudou a abrir aquela lata’. ‘e quando você deixou aquele pires sujo na pia’. uns rancores que, espero eu, existam apenas porque eles estão confinados, porque deve ser muito tóxico conviver com pessoas que lembram de tudo - lembrando que o esquecimento é parte inseparável da memória.
posto isso, acho que a ‘conversa’ no bbb figura mais como uma das palavras evoluidonas (junto de ‘lugar’ e ‘contexto’) aparentando que as instituições funcionam normalmente, as pessoas são maduras mas está tudo ruindo. é sentar naqueles pufes coloridos pra fazer emergir o rancor puro malte envelhecido em tonéis de carvalho.
sabemos que não é só chegar e conversar. nunca ‘é só’. inclusive as conversas no bbb geram novos conflitos e são matéria-prima das tretas que sustentam o programa. a aparência de civilidade fracassando no pay per view. as pessoas definitivamente não conversam de fato no bbb. o que vejo ocorrer na prática são estes 8 passos:
pessoa A fala ‘suas verdades’,
pessoa B fala ‘suas verdades’,
eles debatem sem sucesso sobre qual dessas verdades prevalece
A fala que B não pode falar sobre aquilo porque não estava lá (mesmo que estivesse, B não estava lá o suficiente segundo A) e se acusam de tirar frases antigas ‘do contexto’
e saem da conversa apenas reafirmando o que pensavam anteriormente (afinal nos dias de hoje ninguém mais abre mão de nada, é sobre vencer e ter razão)
incompreendido pois não venceu, A adquire sentimentos de ódio e vingança pelo interlocutor B e vice-versa
A e B terminam se abraçando e pedem desculpas (fingem)
A e B aguardam a primeira chance para reviver em dobro o rancor criado nesse papo e agendam nova conversa onde vão expor ‘suas verdades’
gente, sério. ZERO energia pra isso.
sem contar que ‘as verdades’ normalmente são uma costura de frases meio prontas que estavam em algum canvas colorido no insta, mas as pessoas se apegam do mesmo jeito como se fossem profundamente suas.
claro, o uso de lugares-comuns pode vir do medo (legítimo) de se abrir e de se colocar vulnerável, ainda que a vulnerabilidade tenha passado a ser algo charmoso e tema de post no linkedin (mas só a dos outros, nunca a sua). ou, claro, sendo realista, falta repertório emocional e a pessoa só sabe o que viu no insta mesmo e paciência, vida que segue.
não podemos esquecer que a crise é estética e também de imaginação.
também há os sequestros de conversas. tem inclusive uma das participantes do mesmo bbb que sempre coloca as coisas sendo sempre sobre ela. qualquer coisa. ela sempre pede muitas conversas e explicações. alguém conta uma piada, mas a dela é muito mais engraçada. alguém está sofrendo, mas ela sofre muito mais e pode provar. alguém fala ‘olha que legal’, mas ela viu primeiro. responde sem escutar, porque ela ia falar dela mesma, então pronto. esses sequestros são mega frequentes - não só lá no bbb, mas todo mundo conhece alguém ou já escutou aquele podcast que coloca o ‘eu’ como o centro que irradia a verdade.
e então o objetivo das conversas na prática passa a ser não ‘resolver’ coisas, mas expor o ‘eu’.
rinha de ‘eus’, um competindo com o outro.
a ‘escuta’ vira palavra de nicho, aquela energia da dinâmica de grupo que coloca o povo em rodas.
enfim, mais uma flowsmag com final aberto e sem conclusões definitivas. mas fico pensando em que ponto a gente perdeu (ou se já teve um dia) a capacidade de ter boas conversas, pessoalmente ou nas redes. se o narcisismo contemporâneo e a substituição da importância da conversa pelo ‘engajamento’ ou a prioridade de ‘ter razão’ destruíram tudo pra sempre.
desromantizo o poder da conversa porque sou cética, mas ao mesmo tempo tenho meus momentos de ingênua barra piegas (contradições) e gostaria de voltar a acreditar no potencial transformador dos diálogos-raiz.
uma coisa bem legal inclusive de ter/ser uma newsletter é isso: por aqui rolam conversas muito legais e sem palquinho, tudo muito singelo nos coments e no email, com momentos despretensiosos, leves e honestos.
como toda boa conversa poderia ser 🍰☕
giro nas newsletters (sempre girando)
falando da importância das palavras, amei essa news da carol sobre ter um caderno. ai que vontade de ter um (mas não consigo, só penso com teclado)
e sobre o mesmo tema, a ótima coifa que fala de cadernos de receitas
e todo mundo tentando achar algo bom pra contar, sempre a news-irmã de gaía deixando nossas sextas de manhã mais sextas de manhã
um brilho essa news da bárbara, sobre a fadiga da disponibilidade (algo que causa tanto sofrimento)
para quem não sabe, já fui bruxa do 71 e atualmente moro no 74. mas uma vez bruxa sempre bruxa 🧙♀
porra são paulo
fiz novamente a receita do pão de batata doce da rita lobo e só digo uma coisa: TENTEM. maravilhosooo. numa próxima vou testar com mandioquinha no lugar, enquanto conseguimos comprar farinha.
sigo abrindo espaço para recebidinhos no pix luciana.andrade@gmail.com, se alguém quiser me oferecer um cafezinho um livro uma roupa bonita.
♥️ muuuito obrigada as pessoas queridas que me apoiaram na edição passada, meu sonho sempre foi ter investidores-anjos ♥️
que texto!! e só percepções incríveis sobre as conversas que temos uns com os outros!
lembrei disso aqui: https://www.instagram.com/p/CbkjhLeLODF/ kkkkk
muito bom o texto! :D