.blefe
#42. séries sobre gente que fingiu, blefou e mesmo perdendo ganhou. we crashed. a vontade de acreditar é o que move. blefar cansa mas pode atrair champagne. blefe como arte. surto coletivo. galã blefe
qualquer dia alguém irá medir o tempo gasto todo dia blefando ou fingindo. e talvez descubra que essas atividades devem consumir uma base de uns 50% do nosso tempo total. ou até mais. basta pensar no blefe como entretenimento e como negócio.
quando o instagram estava mais no auge, ele evidenciou o quanto se investia (o verbo investir não é por acaso aqui) para valorizar todas as coisas e momentos. o tempo de tomar o drink às vezes é equivalente ao tempo que se gasta para postar sobre todo o conceito envolvido no drink, escolhendo frases, stickers e filtros para dar um up a algo que nem precisaria. quanto tempo gastamos viajando versus postando a viagem? quantas vezes já comi um prato frio, porque quando ele chegou fiquei fotografando? acontece.
blefe como entretenimento
mas nem era sobre isso a news, era mais sobre blefe mesmo. chama a atenção como, ultimamente, os streaming têm lançado vários filmes-documentários-séries sobre pessoas e empresas que blefaram. normalmente trazem uma narrativa meio moralista de ‘ascensão e queda’. fora que a gente sabe que essa ‘queda’ às vezes nem existe ou nem é tão grande, comparada com o estrago que foi feito.
recentemente surgiram o inventando anna, o golpista do tinder e vi metade do doc abercrombie & fitch, que tem como subtítulo o tal ‘ascensão e queda’. vão lançar em breve a série super pumped, com a primeira temporada dedicada a uber, nessa linha. na apple tv, estou adorando e terminando we crashed, sobre a também ascensão e queda da we work. também quero ver the dropout, sobre a fraude bilionária de uma empresa de biotecnologia. em comum, nenhum desses CEOs ou empresas tiveram síndrome de impostor, o que acho sempre irônico - já escrevi sobre isso dia desses em outra news, que quem de fato é impostor real dificilmente sofre com alguma síndrome.
a história da we work é um perfeito exemplo do fake it until you make it. adam neumann (jared leto) é um cara que tenta empreender, fracassa em alguns projetos, mas tem aquela autoestima do hetero branco inabalável. um belo dia ele tem uma ideia que ainda não sabe bem como desenvolver. adam não tem dinheiro algum, mas vai cooptando pessoas pouco a pouco até reunir uma rede de gente fascinada por ele ao redor.
o blefe precisa de pessoas fragilizadas
normalmente eram pessoas fragilizadas que acreditavam nele, cada uma a seu modo, e não necessariamente pessoas ingênuas. daí a mágica da coisa. tinha o storytelling repetido sempre com tanta energia e agregando novos elementos (que adam ia coletando das falas das pessoas, de programas de tv e outras coisas pelo caminho) que contagiava a galera que buscava algum sentido pra vida. fazer um gritinho de guerra - eu digo we, você diz work - ajuda demais.
adam explora os pontos de cada uma dessas pessoas com habilidade, cara de pau, arrogância e a mega confiança.
como o arquiteto miguel, que está totalmente fodido no trabalho e louco pra mudar de vida, então passa a trabalhar meio que de graça pro adam. vira tipo amigo, mas é constantemente humilhado por não ser genial;
tem a futura esposa rebekah (maravilhosamente vivida por anne hathaway): instrutora de yoga, atriz frustrada, ex-estudante de business. é quem cria de fato os conceitos e a visão que adam usa para construir e vender seu negócio, mas poucas vezes foi reconhecida e pouco convencia sobre sua capacidade;
ou mesmo os investidores, que aparentam sobriedade mas na real são inseguros com a perspectiva de ficarem de fora da grande nova bolha. ‘vai que a gente não investe no negócio, o adam lucra trilhões e a gente perde essa oportunidade’, então na dúvida eles dão bilhões pro adam gastar. mercado financeiro é instinto e emoção, ainda que finjam dizendo que são decisões racionais com muitas pastinhas e papeis.
é na base desses jogos, desses blefes e do seu carisma, que adam vai sugando palavras, ideias, dinheiro e trabalho das pessoas ao redor para compor seu storytelling e seu conglomerado de espaços de coworking pelo mundo.
o blefe só existe porque além do blefador existe toda uma sociedade altamente propensa a acreditar - e a comprar aquilo. pactos.
o blefe dispensa coerência
em sociedades frágeis como a nossa, falar algo com convicção e blefar bem valem mais do que muita coisa, mais que trabalho, ciência ou educação. ninguém se importa se for mentira, lotado de senso comum ou de contradições. a narrativa é o fundamental. inclusive, o surreal engaja bem mais que o real.
porque né, tudo bem uma empresa de coworking como a we work precarizar seus próprios trabalhadores e ser um espaço pouquíssimo pensado para trabalhar. as pessoas que frequentam o we work também fingem que trabalham, mas na verdade estão tomando cerveja ou no balancinho tirando selfie.
quem de nós está trabalhando e quem de nós está no balancinho? (olha para a plateia desafiando) - anotar que esse pode ser o começo interativo da minha palestra um dia kkkk
cada cena com adam é um espetáculo de blefes. ele não tem absolutamente nada, só a narrativa e looks simples à la steve jobs. e isso basta para atrair investidores experientes, profissionais entusiasmados, fãs e tudo. ele não tem nada, mas diz que a ideia dele vale 40 bilhões de dólares - e o povo acredita. o fake vira true.
dizer que a we work era uma comunidade (americano ama uma ‘community’ mas é o povo mais individualista que há) é daqueles absurdos que nos colocam até em dúvida. tudo era vendido como um grande WE, quando na verdade era um imenso ME (que é ‘we’ invertido. CLARO que tem esse momento na série e a sensação é bem aháá quando acontece). no fim das contas, é capitalismo, tudo acaba nessa palavra.
o blefe é o novo real
de tanto fingir e blefar, as coisas de fato começam a acontecer e a empresa expande, mas a gestão (risos) é tão destrambelhada que eles sempre operam no vermelho e vão indo lindamente pra um grande buraco (lindo de ver). mas o dinheiro não para de entrar, porque essa má fase é vendida como natural e que em breve vai rolar um boom. ninguém está fazendo nada, mas acredita que vai dar certo porque sim. mesmo perdendo tudo, no entanto, adam é o tipo de pessoa que continua rica e apostando alto sempre. ai que ódio ahaha.
com certeza o ‘verdadeiro’ adam já deve estar envelopando esse fracasso em novos projetos e um tedx que será uma inspiração aos jovens de t-shirt cinza que querem ser os próximos unicórnios jogando sinuca no escritório.
na base do blefe e da narrativa, o mundo gira, o de cima sobe e o de baixo desce. o brasil morre há mais de 3 anos com um blefe na presidência. livros nos ensinam a blefar e a vender o que não somos nem temos. existem pactos sociais e toda uma literatura que motivam a fingir, ora mandando o ‘foda-se’ ora ‘sendo a melhor versão de você’.
o que não é uma bolsa de valores, senão um grande blefe? ‘a gente aposta que a ação vai subir’, elon musk twitta ‘yes’ e a ação de fato sobe. tudo parece operar assim hoje em dia. o caminho parece cada vez mais curto e rápido entre o ‘eu tive uma ideia na gagagem’ e o aporte de 1 bilhão. o que é o metaverso, senão um imenso blefe de estética duvidosa? todo mundo com avatares feios perdidos em cenários vazios fingindo que a nova era chegou. coisas que não existem valendo bilhões. o blefe assumindo escalas industriais.
a popularidade do termo ‘bolha’ nas nossas vidas é um grande sintoma do nosso tempo.
tudo é artificial, inflado e pode explodir a qualquer momento.
blefar requer coragem
enquanto eu via we crashed, fiquei pensando se algum dia eu teria coragem de fazer que nem o adam neumann. sei lá, jamais.
imagina entrar numa sala cheia de executivos pra vender algo que não existe, dizer que vou mudar o mundo com isso e que minha ideia vale 40 bilhões, sustentando a cara de pau sem tremer. fazer tipo a inventando anna, que fazia um carão e conseguia voar de jatinho, morar num hotel cinco estrelas ou comer no restaurante caro sem pagar. deeeeus me livre sair sem pagar.
sou o tipo da pessoa que morre de medo de fazer algo errado. já penso que eu não teria dinheiro pra devolver o investimento pro moço do banco caso minha startup desse errado - um pensamento bem de gente que paga boletos e que se importa com dignidade, essa palavra cringe. eu não teria coragem de blefar, de fingir que a confiança era absoluta em mim mesma, a ponto de todo mundo acreditar em mim também e o ciclo fechar, a coisa acontecer a partir desse nada. uma aposta que o outro vai comprar também a ideia que eu mal sei qual é.
[cá entre nós, a gente nunca sabe até que ponto a autoconfiança é real ou blefe. vai lá no insta agora e tenta descobrir quem está fingindo. mas apenas fingir autoconfiança já pode trazer grandes resultados, publis e seguidores, aparentemente]
além do mais, blefar cansa
eu não teria energia. blefar exige tempo, habilidades e todo um pacto social que ofereça o consentimento necessário, né meu povo. já basta a jornada de trabalho.
imagina a energia, a itaipu interna necessária para fingir competência, comprometimento, performance e estabilidade emocional. pois é o que acontece hoje e quem faz bem consegue grandes feitos.
além de ser uma pessoa, precisamos sustentar uma ou mais personalidades extras. é um esforço dobrado e acredito que isso esteja nos exaurindo física e mentalmente. blefamos e fingimos a todo momento, apostamos em nós e nos outros todo dia, sem perceber. a cada vez que você diz que ‘tá tudo bem’ e não está, ou ‘eu sei’ sem ter entendido nada ou acredita que alguém está feliz, mas não está.
se eu estou fingindo e o outro também, imagina o rolo do mundo.
onde nos metemos.
e aí repetindo a pergunta do início: quanto tempo investimos fazendo cena e vendo as cenas dos outros?
vale a pena blefar?
a lição que a maioria dessas séries deixa é que vale super. neste metaverso real de fingimentos em que já estamos, às vezes blefar já basta, nem precisa fazer algo de fato. blefar já produz resultados e, ainda que depois da ‘ascensão’ venha a ‘queda’, vai ser ‘experiência’, render um post no LinkedIn, quem sabe um livro. tanto a vitória quanto o fracasso e até o blefe podem ser capitalizados.
e quem blefou vai estar sempre por cima de quem não teve essa coragem. aproveitou, se divertiu, bebeu champagne, pegou jatinho. e eu?
há quem tenha transformado o blefe em arte. houve um caso interessantíssimo em fortaleza, quando eu tinha acabado de terminar a faculdade. um então professor que também atuava em jornal publicou em 2006 uma matéria sobre um artista japonês que estava abrindo uma exposição. foi feita até uma entrevista, a apuração comentava que seria sua quarta mostra no país, tinha fotos das obras e tudo.
só que souzousareta geijutsuka não existia. esse nome na real significa 'artista inventado' em japonês. tudo tinha sido uma pegadinha, uma cilada, um happenning criado por um artista plástico paulista radicado no ceará, que inventou o japonês, a exposição, o material de divulgação, para testar a credibilidade do jornalismo cultural e a relação com as instituições. foi um tremendo constrangimento na imprensa local na época, a carreira de jornalista do meu professor ficou severamente comprometida.
publicou-se ali todo um material sem checagem porque ele vinha de uma fonte confiável e conhecida. a conclusão é que isso nada garante. um dos maiores blefes do jornalismo que conheço.
medos reais que me acompanham há décadas
a carla, nessa news ótima, pensa sobre a linha tênue entre ficção e realidade, reality shows, os pactos que existem entre adultos e como os limites entre o que acontece e o que a gente diz que acontece são muito pequenos. leiam, assinem e amem também a outra cozinha.
tô há dias rindo disso. é o galã mais blefe dos últimos tempos.
amo demais o jove. #pantanal
sextou em frangalhos.
Voltei ao conto de Andersen "A Roupa Nova do Imperador" que tem um super blefe que engana bem, até a página 2...
Minha pressão arterial já não permite sustentar um blefe, nem deixar de ser trouxa depois de uma certa idade