.autoengano
#73. a seita que dói menos. como se faz parte de uma seita. 72h. séries, podcasts e filme nessa vibe. galinhas inseguras forever.
puxadíssimo esse início de 2023. o ano começou com, para dizer o mínimo, uma energia caótica terrível. quando olho para a última news do ano passado, em que falei sobre um caos do bem, talvez eu não tenha expressado meus desejos com as melhores palavras para o universo (modesta ela, das que acham que, por não ter soprado canela no dia primeiro, o mundo inteiro colapsou). ainda não tenho palavras pra processar o domingo da destruição, mas amo que o gado está sendo vacinado. pessoalmente, estou me sustentando emocionalmente como posso, despencando de vez em quando. mas tentando. além de perder o trabalho, perdi meu cachorrinho igor e choro de saudade dia sim e dia sim, desde então. tem sido muito difícil, mais do que eu imaginava. ele foi minha familinha em sp por quase sete anos e não consigo falar mais que isso sem voltar a chorar. vou tentar escrever umas coisinhas aqui e sei que vocês vão entender se faltar ou sobrar algo no texto, que talvez não seja o melhor. mas para mim é o possível e é importante não abalar esse espaço cremoso que construímos. aos poucos vamos levando - e torço que dias suaves e melhores venham para todos nós (o quanto antes).
estar obcecada por seitas me coloca automaticamente em uma seita? talvez. cá estou eu muito interessada no comportamento dos sujeitos outrora acampados nas pracinhas de quartéis, além de processos de radicalização em geral, normalmente relacionados a algoritmos que vão num crescendo - já fiz até testes, começando por uma busca ingênua por frases até que as imagens começaram a me mostrar looks cristãos com saias de shape sereia. venho interessada em como é possível radicalizar absolutamente qualquer tema.
para coroar minha observação caseira sobre seitas, comecei a não apenas escutar mas a assinar o podcast novo do chico felitti, o ateliê. ele conta a história de uma escola de artes no centro de sp, que debaixo dos nossos narizes era na verdade uma seita com um mestre e discípulos em uma relação abusiva e violenta. os alunos pagavam caro e aceitavam tudo ou quase tudo imaginando que seria um ritual necessário de passagem para o mundinho da arte. muita gente que tem escutado reclama dos sotaques da elite e do quanto é difícil ter empatia por pessoas ricas sofrendo em nome da arte, fatos. inclusive tenho me servido do entretenimento tipo eat the rich com parasita, bacurau, white lotus, nove desconhecidos, o menu etc. mas confesso que passei meio por cima disso.
me interessa muito mais no momento a grande pergunta:
como pessoas fazem parte de seitas?
entrar numa seita é aparentemente simples. primeiro que praticamente ninguém entra numa seita, bem-vindo, vista esta roupa estranha e aceite essa tortura. a pessoa entra numa escola, numa igreja, num partido, num grupo de zap, numa academia de ginástica, num box de cross fit, num curso de coach, num clube do livro, num podcast, num canal de youtube, numa dieta, num grupo de teatro, numa empresa achando que é só uma escola, uma igreja, um partido, um show dos beatles etc etc. tudo tem potencial de virar algo radical. olha o linkedin como tá.
a seita se constitui gradualmente, quando já se está lá dentro sem poder, querer ou saber sair. a pessoa não veste uma bandeira do brasil no dia #1 da coisa. ela vai numa progressão (ou regressão, como queiram) onde tudo vai fazendo sentido, paralelamente a um autoengano que sutilmente se opera. quando envolve algum tipo de espiritualidade deve ser ainda mais complicado. tudo o que estou pensando aqui é no campo da suposição e observação, depois de uns 10 documentários de seitas que devorei. é achismo meu com meus botões, sobre um tema que tem me fascinado. vale sempre ressaltar.
o que me atrai é especialmente aquele momento em que o autoengano inicial se dissipa e a pessoa tem aquele click de seguir na seita. sempre que escuto ou leio sobre seitas, esse autoengano no princípio parece fundamental. é aquele instante - narrado inclusive em o ateliê - em que o sujeito quebra e fala tá bem, isso é estranho, não sei se é certo, wow, mas… vou continuar.
e o autoengano se completa com a pessoa reproduzindo para si as boas razões para seguir naquela comunidade. ah, porque aqui encontrei mais pessoas como eu, faço parte de algo, me sinto mais inteligente e superior, me traz alegria. nada disso precisa ser verdade.
afinal, no paralelo, dependendo do extremo em que a pessoa chegar, ela já terá perdido ou substituído família, amigos, trabalho, livros ou artistas de que gostava, assumindo a nova personalidade dentro da dissonância cognitiva coletiva dentro da seita. quando ela perceber, já foi. independe de ser inteligente, depende do momento e pode ocorrer com qualquer um.
obviamente não criei esse conceito, dissonância cognitiva coletiva é de um entrevistado do 72 horas, episódio do podcast rádio novelo apresenta, sobre esse espectro de seita que tem atravessado o país - e não só.
ele conta que sabemos quando estamos fazendo coisas erradas e se ultrapassamos determinados limites. somos capazes de racionalizar quando fracassamos. em um estágio da dissonância as pessoas que já estão mergulhadas no erro buscam evitar a exposição a fontes que explicitem isso e-ou se cercam de uma comunidade que confirme seu comportamento errado. errar em grupo é muito mais ok. tudo se justifica quando se criam várias verdades. e tudo se aprofunda.
o que buscamos é conforto - e é isso que uma seita pode oferecer.
as pessoas querem comunidade, estabilidade, hierarquia e um sentido pra vida. e encontram nas seitas todas as explicações, de uma forma geralmente simples. o componente de autoengano está muito naquele início, acredito eu, em se abrir para aceitar.
evidente que não sou uma estudiosa do assunto e muito menos estou culpando vítimas dos abusos físicos e emocionais que esses lugares podem causar, trazendo essa noção do autoengano. sequer questiono a capacidade das pessoas que entram numa dessas, porque é fácil falar que você é espertão demais para isso, mas cada um sabe de quantas seitas já fez ou faz parte, em variados graus. a quantos (auto)controles estamos impostos e o que somos capazes de fazer para pertencer. vale pensar.
ainda que não seja um culto formal, organizado e periódico a algo ou alguém, me pergunto também: será que com os algoritmos estamos mais propensos a ter comportamentos de seita?
e sempre acabo falando deles: eu digo algo e vocês dizem ritmos.
acho que o princípio em que se baseiam os algoritmos, que é a formação das famosas bolhas, é um ponto de partida para pensar. vários cultos que já passaram pela nossa história - do osho ou bikram ao heaven´s gate, passando pelos terraplanistas, o jesus dos últimos dias ou pelo nxivm (ando fascinada com os paralelos entre the vow e o ateliê). mas as redes sociais (incluindo os primordiais fóruns) potencializam a cooptação de pessoas e a lógica de radicalização, com a formação de grupos compulsivamente especializados e emocionalmente mobilizados sobre determinados temas.
e são temas, como falei mais no início, que começam inocentes. não dá pra ser super contra, tipo maternidade, yoga, ETs, bbb, taylor swift, pão caseiro, mesa posta, trocar comida por chá (esse sim, difícil). absolutamente qualquer grupo pode ser radicalizado de alguma forma. você começa procurando como aplicar delineador e logo surgem conteúdos de harmonização facial e de repente você já está inserido, recebendo oferta de botox no insta.
eu só queria o tracinho do delineador, mas a sementinha já foi plantada e agora a felicidade está em jogo.
e como estamos mais emocionalmente suscetíveis - os algoritmos e o capitalismo estão aí apontando o que falta, sempre o que falta para sermos felizes -, o ambiente parece ser ainda mais favorável para a busca de um lugar de pertencimento, com:
símbolos que farão sentido,
microcontroles que trarão a sensação de que está recebendo atenção,
hierarquias que vão oferecer a estabilidade que falta hoje no mundo,
pessoas que pensam parecido,
um guru com pensamento único,
a comodidade de não precisar construir uma identidade nem escolher sua própria roupa, pois o grupo prevalece,
a empolgação de se sentir parte de algo,
receber informações que ninguém mais tem,
além de ter geralmente um inimigo em comum para odiar e organizar todos os afetos enquanto exerce seus micropoderes.
para quem nao tem nada, isso tudo é ouro. te entregam presente, passado e futuro prontos, incluindo um sistema estético e de crenças à parte.
e no autoengano - consciente ou não - a pessoa entra e talvez permaneça nesse grande pacto, ainda que seja estranho, ainda que escale e chegue a envolver algum grau de violência, vigilância, isolamento, ignorância, intolerância. e será cada vez mais difícil escapar, seja porque tudo isso se internaliza, seja porque é muito difícil assumir quando o autoengano e o fracasso vão mais longe que o esperado. quantas coisas a gente conhece que podem assumir esse perfil e essa proporção - pensando aqui.
e também existe o pacto de autoengano de quem está de fora, convenhamos. de achar que não é nada demais, que é folclórico e inofensivo, que vai passar. até um dia em que o caldo entorna.
podcast: sounds like a cult
starbucks, ru paul, casamentos, cirurgias plásticas, fast fashion, true crimes… tudo pode ser vivenciado como um culto, quando a gente olha bem para o comportamento de adoradores. esse podcast é interessante, naquele modelo de amigas conversando, às vezes com um entrevistado. é em inglês, infelizmente, mas vale pelo menos passear pelos temas e dá para imaginar como realmente estamos imersos nesse comportamento. uma das apresentadoras escreveu um livro que vou ler em breve, cultish, que torço para ser traduzido.
filme: muco (nos cinemas)
muco: contradição na tradição é um doc brasileiro em cartaz em alguns cinemas que fala da grande sinuca entre a alimentação ayurvédica - rica em leite e derivados -, a espiritualidade envolvida e o sofrimento que a indústria pecuária gera aos animais, além do desequilíbrio ambiental. é um tema que renderia uma discussão mais profunda, mas é interessante só por trazer essa pauta, mostrando que as vacas não são exatamente sagradas na índia e em como a indústria fabrica conceitos para apaziguar a consciência pesada das pessoas (novamente o autoengano), inventando ovos ou carnes de animais felizes. será que meu veganismo: vem aí? uma ressalva para as legendas, que carecem de revisão, alem de momentos de achismo que podem descredibilizar tudo, como umas mulheres que afirmam terem se curado do câncer depois que pararam de tomar leite. calma, né.
série: the vow (hbo)
relutei em assistir, porque muitos episódios são só pessoas conversando, com uma edição até certo ponto monótona. eu acostumada a gráficos coloridos da netflix. mas por conta de o ateliê voltei a assistir e realmente a primeira temporada termina bombástica, depois de um início lento. fui para a segunda, mas ainda estou no ep 3. a história é de uma seita coach chamada nxivm, que se desdobra em diversos projetos incluindo empoderamento feminino e masculino (oi) e outros braços empresariais, com presença em várias partes do mundo. a proposta deles é transformar a vida de pessoas em algo de sucesso, alcançando seu máximo potencial, intercalando neurolinguística e outras técnicas. descobre-se que o guru (que tem uma vibe incel imensa) e a seita envolvem práticas como controle de calorias, marcação dos corpos, iniciações sexuais, cárcere, chantagem e vários outros abusos. e obviamente ninguém alcança potencial algum lá.
as pessoas acreditam no que elas querem acreditar. amei essa amo news da
e como ela dialoga super com essa edição <3sextou com muito café
Luci, que edição fenomenal. Também adoro o Sounds Like a Cult, amo essa reflexão de todas as nossas crenças não questionadas. E sinto muito pelo Igor, doloroso demais. Um abraço em você, amiga ❤️
Sinto muito pelo dog. 😭
Acho que o que leva pessoas a serem capturadas por seitas tem alguns fatores de complexidade. Me chama muito atenção a característica majoritariamente branca de quase todas essas seitas que vc citou. Sinto que é algo a ser estudado, observado com cautela. Tô ouvindo o Podcast e o sentimento de eat the rich é muito forte, ainda com compaixão pelas violências sofridas... É papo pra mais de metro, me interesso bastante pelo fator psicológico da coisa, mas tbm acho importante localizar cada história no seu espaço tempo...